sábado, 19 de fevereiro de 2011

Nota

Definitivamente, sou compassivo a vozes. E, às vezes, nós, tangíveis as vozes, somos submetidos a certas situações que, na realidade, não apresentam um fundo de racionalidade.

Semana passada, uma tia veio a falecer. Recebemos a notícia como se estivéssemos aguardando um desfile mega espetacular de uma certa escola de samba. O telefone, estridentemente, tocou. Como se fosse um infeliz presságio, prima Erenice atendeu. Estávamos todos em casa, mais precisamente no lugar em que cismam dizer que é o melhor lugar, o lugar mais santo e comunal, a cozinha. Como o telefone estava posto na sala, prima Erenice regressou a cozinha como que se lhe tivessem sugado todo o sangue à canudinho, gota por gota. Ficamos todos apreensivos com tamanha palidez, eu, num determinado momento, acreditei que, acidentalmente, Erenice havia ingerido uma garrafa de Leite de Magnésia, mas não o era. Era a morte apenas.

Quase todos se derreteram num afamado pranto, não porque fosse a tia Carmem (a falecida) muito querida, não, mas a forma de como “fechou a casaca” nos pareceu muito trivial, morreu engasgada com uma espinha de traíra.

Após todo o leigo ritual dos pêsames coletivo, eu era o único que não havia se alarmado e nem se encontrava com o nariz similar a uma pimenta malagueta em ponto de colheita. Não porque eu seja uma pessoa turrona ou incompreensível, mas porque sou seco. O meu fluído lacrimal é composto por substâncias que não veem à tona por qualquer banalidade. Pois sim, a morte é uma banalidade. Seguindo todo o clima de combustão veloresca, havia de se fazer aquilo que devia de ser feito, ou seja, enroupar a defunta, ornamentar o velório e avisar os desavisados. Eu, mais precisamente, fui incumbido de realizar a última tarefa, pois era a que mais requisitava uma atitude hermética e cautelosa. Bem, nem ao menos deram-me a oportunidade de por em prática toda a minha experiência de auditor das notas de falecimento da cidade. Acredito, que toda essa minha sensibilidade por vozes teve inicio bem aí. Quando, em todas as manhãs de sábados – isso mesmo, aqui as pessoas adoram morrer, justamente, no sábado, aquela austera e penosa voz, despertava-me. Sempre com o mesmo padecido bordão: - “É com muito pesar que comunicamos o falecimento do Senhor Fulano...”. E o travesseiro servia-me de aterro aos meus ouvidos, e abafava um pouco daquela insidiosa voz.

Assim, escreveram-me um bilhetinho, um recadinho, bobo bobo... Que até mesmo aqueles que mais temem a morte conseguiriam fazê-lo de olhos semi encerrados.

No conteúdo, cravaram assim: “- Querido (nome do parente ao qual iria comunicar o falecimento) venho através, comunicar o falecimento da tia Carmem, o enterro acontecerá na hora tal, no cemitério tal... aguardamos pesarosamente a tua presença.” E eu tive que me submeter a esse vexame. Aguardar, como se estivéssemos aguardando para o coquetel da certeza mais paradoxal do mundo.

Mas o pior ocorreu no momento em que iniciei, para todo o congênere, as devidas ligações; e ao findar de cada comunicado – o fazia como se fosse uma boneca de pilha que ao receber um abraço se retorce e diz: “eu te amo!”, ouvia choramingos e o telefone do interlocutor se espatifar no chão. Isso fez-me pensar o quanto as pessoas são sentimentais à morte, pode ser até mesmo aquele vizinho que, grudado ao seu muro, num dia qualquer, vem a “empacotar”, e todos se apavoram e dizem: “Nossa, ele não merecia!”, ou então, (independente da idade) “Como era novo, não merecia morrer!” Como se fosse destinado a ser preservado no relicário da vida ou virar semente.

No fim, o velório foi um sucesso, pois até mesmo os vizinhos se compadeceram e tomaram a frente do acontecimento. Ajudaram a ornamentar, fizeram quitutes, café, chá... Parecia até mesmo uma festa de confraternização no Palácio de Buckingham, sendo que a rainha dessa “festa” também possuía uma coroa, granulada por fitas vermelhas e maços de galhos secos – isso só para não dizer que pelo menos uma vez na vida, ou melhor, na morte, tia Carmem não parecesse com a Rainha Elizabeth II.

Passado todo o cerimonial litúrgico e os ritos profanos, chegou-se a hora do desmantelado momento da alcovação. Particularmente, detesto cemitérios, eles não deveriam existir, se existem é por conta da inóspita mania humana em guardar coisas velhas e ultrapassadas. Mas, por um lado, confesso, tenho certa queda por esses sítios, apesar de todo o meu lado convulsivo os detestar. Pois são nesses lugares é que melhor consigo acalmar toda esta minha depravada sensibilidade por vozes. É um lugar neutro, são. Não se escuta nada, ou melhor, será que não escutamos realmente? Ou os sepultados querem nos dizer algo e, por contarmos com uma audição tão definhada, não teríamos capacidade ouví-los? Sei lá.

Enfim, o enterro foi feito e, assim, todos seguiram para casa com a cabeça desnivelada. Já parecia que o sol estava por sair – pois na hora do sepultamento, o céu se escondia por sobre intrujadas nuvens.

Por mais, sigo até hoje sensível a vozes, tendo, às vezes, que renunciar a certos acontecimentos em minha vida. Sei que isto pode parecer uma infeliz comparação, ou seja, essa ambivalência entre morte e voz. Pode ser que, no outro mundo, quando eu estiver sendo conduzido por Hermes Trismegisto ao trono de Hades, não possa, definitivamente, livrar-me das “vozes”?

2 comentários:

  1. Obrigado, pelos comentários. Coloquei teu blog entre meus favoritos. Vou vir sempre, pode deixar. Refletiremos juntos, tanto quanto pudermos... Esse teu post, por exemplo, cheguei a me divertir com ele, nunca consegui escrever sobre morte deste jeito. E me fez lembrar de um post meu, já antigo, sobre isto: http://sofaltarespirar.blogspot.com/2007/08/o-mdico-acha-que-no-intestino-agora.html

    Continua no texto, este emaranhado nos faz melhores.

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  2. realmente é esplendido o modo,como vc trata a morte...um facto tão temeroso entre nós meros seres chamados humanos,parabéns e aqui vai o endereço do meu blog,pra vc ler e comentar se possível adorei seu blog ps:as poesias do meu blog são minhas espero sua opinião abraços http://wallacejos63.blogspot.com/

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