quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

#Pororoca Literária: Kafka/Saramago

Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Thiago Leite deu por si agachado ao chão como um animal imundo, como se esperasse algum sinal de estupefação para saltar-lhe à garganta. O horror disse, pela primeira vez, "aqui estou", quando avistou, pelo vidro da janela, vultos que pareciam de gente, que saltavam para o vazio como se tivessem acabado de escolher uma morte. Agora o horror aparecia a cada instante ao remover-se, ao olhar para a branca parede e uma chapa de alumínio retorcida que estava a cobrir a entrada para o sótão. Viu refletida uma cabeça irreconhecível, um braço, uma perna, um abdómen desfeito, um tórax espalmado. Apertou bem as pálpebras para ver se os olhos impedissem que tamanho horror lhe entrasse pela mente. Sepultados debaixo de sua cama, sob montes de areia, viu cadáveres em ponto inicial de putrefação. Sentiu em sua boca uma ânsia, e vomitou cinzas, como se de lixo se tratasse. Que tenha conseguido suportar a repugnância que estas horas provavelmente lhe causaram, não pediu nada, não rogou a seus anjos da guarda, nem passou ao ateísmo. Não perdeu a razão, mas soube que se há um mundo, é só um mundo, e é esse o nome que lhe ensinaram a dar, a esta pertinaz e corrosiva câmara de produzir mortos, como ficou demonstrado e desgraçadamente continuará a demonstrar-se. Sentiu-se terrivelmente igual a todos os seres humanos onde quer que estejam e seja qual for o credo, intoxicado por esse pensamento, uma heresia, compreendeu que da besta o próprio homem acabou por fazer do homem uma besta.