domingo, 22 de abril de 2012

Um Diálogo Suicida

Ei, acho que vou me matar. 

Por quê?

Não sei exatamente. Mas não foi isso que Mayakovsky , Emma Bovary, Anna Karenina e o Jovem Werther fizeram?

Bom, é. Mas o senhor não é nenhum deles!

E isto não seria um bom indício?

É...

E está aí, é uma pergunta que jamais deve ser feita a um potencial suicida. "Por que é que você vai se matar?" O tempo é insuficiente para tal coisa. E ninguém sabe, ao certo, por que é que vai se matar. Talvez por estar cansado de alguma coisa, de si mesmo. Penso como naquela velha cantiga que um pobre velho cantava ao fim da tarde lá nos cantos da instância: “Deus está no céu, tudo está errado no mundo.”.

Talvez. Eu não me mataria. Pois...

Feio é viver!

Achas?

Sim. Na época em que a vida era gorda e robusta, onde nos oferecia muitos frutos e doces, era melhor de se viver. Agora não é. Isto quando as pessoas se achavam pertencentes àquilo que se chama de humanidade, que também, hoje, não passa de uma inconcebível abstração. Mas, no fundo, ainda assim era melhor.

Hum... É falta de Deus.

Ah, e eu por um acaso ando a criar problemas com Deus? Ele lá e eu cá. Deixe-me quieto! O mundo já anda por Lhe dar muito trabalho. Além do mais, tenho a impressão que Deus é triste.

Por quê?

Por quê? Se é tão onipotente e onipresente, Ele deve saber tudo sobre tudo. Além do mais, um suicida nunca diz, previamente, porque é que vai se matar. Ele, repentinamente, se mata!

Mas, você realmente quer se matar? Ou quer apenas aderir aos caprichos das estatísticas?

Já disse! Pare!

Tudo bem.

Como não desejo discutir as causas do meu suicídio com você, pretendo partir para algo mais sério.

O quê?

Uma nota. Quero anotar tudo o que vier à cabeça. Do mais tenro ao mais senil.

Escreve uma pequena memória.

Não. Acho que não escreverei nada. Toda vez que penso nisso lembro-me daquele Homem que escreveu meia dúzia de palavras na areia e ninguém as leu. Tenho medo de ser esquecido.

A vida é pobre demais para também não ser esquecida, senhor.

É. Já sei. Não quero.

O quê? Se matar?

Talvez. As coisas estão como estão, perfeitas. Se há alguma distorção é por conta de olhos humanos, pois a natureza olha a tudo e a todos com olhos sinceros. Estranho. Estou perdendo sem esforço todos os idiomas que aprendi. Não recordo de um pequeno aforismo francês. Poxa...
Jovem, parece-me tão monumental quanto antes. Não havia reparado tua chegada.

Entrei sem bater. Perdão.

Tua voz parece aquela em que toda a noite me fala. Eu tenho vinte anos e aparento quarenta. Hoje, sinto-me anterior aos gregos, as pirâmides. Pensei que cada uma das minhas palavras se esgotaria e não me serviriam, mas perduram e estão se transformando neste diálogo.

Sua implacável memória, senhor, entorpece seu temor de multiplicar momentos inúteis.
Estás Morto. 

sábado, 14 de abril de 2012

Mais Um

É bem um drama o que vivi, ou vivo (?). Daí minha inclinação por heroínas trágicas e, também, uma forte propensão ao suicídio. Mas, a morte, neste instante, não me atrai em nada. Se a vida já não me basta, a morte muito menos. As convenções que se criaram ao longo do tempo, de nada valem. Às vezes, deitado em meu catre, em noites que se apresentam tão tristes quanto minhas sessões de psicanálise, tenho a impressão de estar morto. De olhos abertos, cravados no simples lustre do alojamento, morro de olhos estarrecidos. Meio que encarando uma platéia atônita, o espetáculo da vida. Mas, isso não vem à nota. Meu objetivo é contar-vos um caso curioso que passei há pouco, e até o presente momento me comove e entristece.

Já sei que, há muito, de nada me agrada a vida. Um transparente e fantasmagórico véu misantrópico se enrola por sobre meu pobre existir. Como disse, nada me surpreende nada, e não acredito que a morte seja uma sapiente alternativa. O que vejo, neste caso, são outros meios de sair deste marasmo. Gostaria de provar e testar de cada coisa um pouco, para, assim, descobrir o que de real me satisfaz. Se me fosse possível, seguiria os passos de Alonso Quijano e me declararia louco, sairia feito o Quixote por entre as veredas dos Pirineus a procura de uma ilha desconhecida. Mas, a loucura é um preço que não estou disposto a pagar. É bem certo que a lógica de nosso insano planeta está direcionada para um tipo de viver sistematizado em valores, tudo o que desejamos fazer é um preço que devemos pagar. Buscaria e faria peripécias por uma nova aventura, ou, se não tivesse solução, viveria novamente.

O ocorrido. Creio que minha deplorável condição de homem não me impede de acreditar em Deus e, também, no Diabo. Muitos acreditam num Senhor supremo e Nele confiam suas angustias e males. Mas, no Diabo, não confiam e não duvidam. Cansado de procurar por Deus e não o encontrar, procurei o Diabo. E, como todo bom homem político, nunca o encontrava. A procura durou uns trinta dias ou uma quarentena inteira, mas ao fim, também, nada! Coitado de mim. Já não era típico, e nem de meu costume, negar ou afirmar a existência de alguma coisa. Vivia por mera questão do viver.

Certa noite, deitado em meu catre no alojamento, ouvi certos ruídos no limiar da porta. Logo, de súbito, apavorei-me com “Ulisses” por sobre o peito. Aproximei-me uns passos da porta e logo avistei pelo olhar mágico um vulto. Pareciam curvas verticais de um sujeito. E eram. O Diabo bateu-me a porta. Mas, caros amigos, em vossas cabeças, vejo, zumbem latidos de inquietação: como descobri que era o Diabo propriamente? Não era preciso descobrir, de logo e repentinamente se apercebia. Via-se em seu semblante um par de olhos humanos, como outro qualquer. Logo, o Diabo quis chá. Fui à cozinha, correndo, e trouxe chá. Após, travamos conversa.

Diabo: O que queres?

Eu: Quero algo a mais. Quero mais que a vida e a morte.

Diabo: Achas mesmo que conseguiria eu, um anjo caído, proporcionar-te certo desejo?

Eu: Sim. Já viveste nos céus e nas fossas. Já viste anjos e já viste querubins; presenciaste o mais pobre e o mais fétido do desejo humano; sabes bem onde se encontra a terrível e pestilenta necrose que aflinge toda a humanidade. Por isso, acho que consegues.

Diabo: Certo. Especifique.

Eu: Com cem mil consigo.

Diabo: Ah, é dinheiro. Suspeitei. Não pedes pouco, não é mesmo?

Eu: Achas?

Diabo: Sim. Por uma alma, sim. Hoje, caro jovem, recebo indiscriminadamente tantas almas que já não me vale à pena pagar por nehnuma outra. Recebo-as inteiramente de graça. É como se caíssem dos céus. Como chuva, entende? Não uso mais desses negócios. Hoje, não negocio mais nada, nem alma.

Eu: Compreendo. (Ar de extrema frustração e desespero. Já sabia que minha alma não valia nada para Deus, e, no exato momento, acabava de descobrir que também não valia nada para o Diabo).

Diabo: Mas, como gostei de ti, simpatizei com tua branca e miúda cara, vou oferecer-te algo. Ofereço-te treze mil. Então?

Eu: E... u... Eu... Aceito!

terça-feira, 10 de abril de 2012

Eu, Crime e Castigo


Falar sobre a literatura de Dostoievski é tratar sobre o que há de mais intenso e perturbador que há na alma humana.

É um ótimo ponto de partida para tratar deste livro que, sem exageros, considero o mais genial que já li. Bom, confesso que esse tipo de afirmação é muito reducionista, pois, seguramente, e pondo em relevância meu incipiente contato com a literatura, virão outros livros, outras leituras e outros escritores que se afirmarão mais geniais que este, ou que se equipararão a este. Não é fácil organizar todo o emaranhado psicológico de Crime e Castigo, porque é um livro chocante e, como disse de início, perturbador.

Sempre mantive muito interesse pela literatura russa. São aqueles tipos de leituras que lemos antes mesmo de pegarmos o livro e nos embrenharmos por suas páginas. É uma espécie de leitura do ouvido. Você ouve as pessoas falarem bem, elogiarem os grandes mestres russos por suas habilidades ficcionais e estilísticas, e, de tanto ouvir, você, de certa forma, se familiariza. Mas não é disso que venho tratar precisamente.

Depois de certo tempo, e justamente adquiri o livro por essas boas recomendações que sempre ouvi, resolvi lançar mão à pequena e volumosa edição de bolso que eu já havia comprado há um tempinho.

E pronto, começa a tortura, uma tortura necessária, digamos. Ao longo da leitura, estive em dúvidas se era eu ou Raskolnivov quem realmente sofria de alucinações e perturbações no espírito. Isso me faz crer que o modo como Dostoiévski opera toda a trama, o "jeito" com que ele escrevia, propriamente, torna o livro ainda mais genial. Escavando cada detalhe da alma, ou daquilo que se acredita ser a alma.

Crime e Castigo despertou em mim uma ânsia inaudita, um parto, uma expiação de uma culpa que, nem mesmo, sabia se existia (ou existia somente dentro do universo da narrativa, e acabei transpondo essa complexidade para a realidade. É algo a ser pensado). Essa é, a que considero, toda a habilidade de Dostoiévski. De forma que o leitor, colocando-se no lugar do narrador, acaba por se tornar quem fala sobre a trama, mas não só descreve, enumerando fatos e intercalando acontecimentos, mas quem sente, quem toca e passa. A leitura foi demorada, longa, conflituosa. Passava dias digerindo. Lia dez, vinte, trinta páginas... e sentia a necessidade de abandonar o livro por um tempo. Deixava-o abandonado, nem mesmo conseguia olhar para capa; sentia-me com “depressão pós-parto”, porque cada dezena de páginas que eu lia, era um parto. Mas, logo, voltava com fervor às pequenas páginas. A fluência da narrativa, a difícil digestão... Os diálogos inesquecíveis entre o assassino e o comissário de polícia. O desespero de uma alma e suas pressões externas.

Chego ao fim. Chego ao fim com uma sensação de querer mais sofrimento e mais castigo e mais dor e mais aflição... a idéia que Dostoievski nos transmite ao fim do livro, da possível recuperação e expiação do criminoso é o que me provocou maior inquietação. Um enigma. Crime e Castigo parece-me uma narrativa eterna (ou o é), e continuará, por via de seus leitores que sentiram Raskolnikov dentro de si, a tecer novos pequenos diálogos em suas almas, em suas consciências, materializando em seus cotidianos cada personagem, cada ação e cada ponto de efervescência. De resto, calo-me. Porque é o melhor a ser feito por agora. E é um dos direitos imprescindíveis de um leitor. Mas isso não é porque, ao fim da resenha, pretendo desmistificar alguma coisa, não, quero dizer que, precisamente, esse livro não é um livro de conversas, um livro fácil que nos serve para puxar um assunto e discorrer sobre algum fato corriqueiro. É algo de misterioso.

Mas confesso que sofri junto de Raskolnikov. Ou, na melhor das hipóteses, rachei a cabeça de uma velha.

terça-feira, 3 de abril de 2012

O Sonho Repetido

Levei eu três noites e três dias para me livrar deste sonho maldito. Não se pode sonhar o mesmo sonho por mais de duas vezes, isto é mentira. Por uma semana inteira sonhei o mesmo sonho, as mesmas repetições de rostos sem nomes, de vidas sem almas, de noites gritantes. Passava-se sempre no mesmo lugar, na mesma hora e com os mesmos personagens. Devem-se evitar, aqui, neste momento, certos detalhes do sonho, ao passo que o pobre escritor correrá o risco de enlouquecer, se não já estiver louco. Perdi noites, cravaram-me olheiras, psicoses, e não me libertei. Hoje estou livre, ao ponto de conseguir voltar e urdir este relato, que se aproximará o máximo da realidade, ou da realidade de minha memória, o que daria no mesmo.

Meus inimigos me detestam por eu ser quem sou. Mas eu não sei, certamente, quem eu sou, porque estou dentro de quem sou. Creio que só se sabe, efetivamente, quem se é, quando se está fora daquilo que se é. Logo, presumo que meus inimigos saibam, e disto evitam falar, quem sou realmente. O que vejo no espelho é apenas um deplorável castelo de pele e, mais recentemente, rugas. A prata, salpicada por meus fios de cabelos, já se mostra tão reluzente como a marca do juízo. Se não sou um amontoado de sonhos, sou um perambulo, um sonâmbulo da morte.

Quando sonhei o sonho pela primeira vez, não dei a mínima importância. Era apenas, pensei, mais uma forma da morte fazer uso de sua indizível face.

Numa capela ao largo de uma colina, desencadeava-se um velório. Até aqui, nada demais, velórios são eventos típicos dos meus sonhos. Poderia eu, caso tivesse uma veia e interesses por essas novas teorias que se vêem por aí, fundar uma empresa especializada em organizar eventos fúnebres. Acredito que minha memória daria para um ótimo catálogo de visitas.

Subindo uma pequena rampa, almofadada de folhas velhas e secas, deparei-me com um pequeno caixão, um caixão branco. Supostamente o branco representa e é portador da pureza e castidade, mas nunca se sabe, nem saberá quem realmente estava posto naquele lugar. Uma criança? Uma virgem? Não sei, e tive medo que abrissem a tampa e mostrassem o terrível corpo.

No recinto não havia mais pessoas senão um grupo de Freiras e um vigário. Não falavam, nada diziam. Quando perceberam minha presença, não souberam agir de outra forma senão com desprezo. É certo que tenho o dom de não existir em certas ocasiões, ou de não ser visto, o que, novamente, daria no mesmo. Quando pensei no que realmente significava minha presença naquele lugar e naquele evento, desencadeou-se um canto. Lá fora se ouvia gritos, apesar de dentro da capela não se ter ouvido um arranhão se quer. Do lado de fora um sujeito gritava que a morte é o fato mais nulo que pode acontecer a um homem. Dizia que se suicidaria para tratar sem ranços de sua tese. Não pensei que esse homem personificava algum de meus inimigos, por serem tão cheios de verdade e não menos numerosos.

Meu caro e simples leitor pode, neste instante, reparar que repito muitas idéias de outros relatos que escrevi. Mas, minha vida é uma condição insistente de repetições de temas e plágios. Plagiei-me por incapacidade e por falta de criatividade. É necessário, assim como é necessário esquecer.

Muito me sufocava o clima da instigante capela. Um odor de cera derretida penetrava pelo recinto de forma desesperadora. Chamuscadas de imagens fantasmagóricas, as paredes aparentavam não receber pintura há tempos. Muito abandonado estava o local, assim como o caixão e, provavelmente, o corpo. Intrigava-me, de fato, pensar se realmente havia um corpo ali, uma vez que o caixão não fora aberto em momento algum. Se posso supor que tudo não passava de um simulacro, tenho a certeza que minha mente é uma péssima máquina de repetir coisas e reproduzir a realidade. Eu não tenho certeza se as freiras permitiam minha presença, pois, em momento algum, olharam-me à face. O vigário, encurvado por sobre um velho livro a rabiscar traços inconciliáveis, murmurava alguma coisa.

E assim o sonho se repetia. Nada de além acontecia. Sempre acabava comigo ao pé de uma árvore de frutos desconhecidos. E o caixão permanecia imaculado, inviolável. Uma incógnita nesta sucessiva repetição de sonhos.

Levei mais um tempo para perceber que no caixão estava depositada toda a minha memória, dos tempos de meus antepassados do mar aos que hoje não abrem mão de tudo o que sabem. Para povoar o tempo, resolvi passar as três noites e os três dias lembrando a ordem e o número dos sonhos. A precisão é algo que não se pode conquistar sendo um simples ser humano, por isso, resolvi apenas consultar um brutal dicionário, o qual dizia: memória = nome.