segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Os Espelhos Velados

O Islã assevera que, no dia inapelável do Juízo, todo perpetrador da imagem de uma coisa viva ressuscitará com suas obras, e lhe será ordenado que as anime, e ele fracassará, e será entregue com ela ao fogo do castigo. Quando menino, conheci esse horror a uma duplicação ou multiplicação espectral da realidade, mas diante dos grandes espelhos. Seu infalível e contínuo funcionamento, sua perseguição de meus atos, sua pantomima cósmica eram então sobrenaturais, desde que anoitecia. Um de meus instantes rogos a Deus e a meu anjo da guarda era o de não sonhar com espelhos. Sei que os vigiava com inquietude. Algumas vezes temi que começassem a divergir da realidade; outras, ver neles meu rosto desfigurado por adversidades estranhas. Soube que esse temor está, outra vez, prodigiosamente no mundo. A história é muito simples. E desagradável.
Em mil novecentos e vinte e sete, conheci uma jovem sombria: primeiro por telefone (porque Júlia começou sendo uma voz sem nome e sem rosto); depois, em uma esquina ao entardecer. Tinha os olhos assustadoramente grandes, os cabelos negros e escorridos, o corpo estrito. Era neta e bisneta de federalistas, como eu de unitários, e essa antiga discórdia de nossos sangues era para nós um vínculo, uma melhor posse da pátria. Vivia com os seus em um desmantelado casarão de teto altíssimo, no ressentimento e na insipidez da decência pobre. De tarde – raras vezes de noite – saíamos para caminhar por seu bairro, que era o de Balvanera. Margeávamos o paredão da estrada de ferro; pela Sarmiento certa vez fomos até as clareiras do Parque Centenario. Entre nós não houve amor nem ficção de amor: eu adivinhava nela uma intensidade que era totalmente estranha à erótica, e a temia. É comum contar às mulheres, para estabelecer intimidade, traços verdadeiros ou apócrifos do passado pueril; devo ter-lhe falado dos espelhos e sugeri, assim, em 1928, uma alucinação que floresceria em 1931. Agora, acabo de saber que ela enlouqueceu e que em seu quarto os espelhos estão velados, porque neles vê meu reflexo, usurpando o seu, e treme e se cala e diz que eu a persigo magicamente.
Infausta servidão a de minha face, a de uma de minhas antigas faces. Esse odioso destino de minhas feições tem que me tornar odioso também, mas já não me importa.
(Jorge Luis Borges)
Obras completas de Jorge Luis Borges, volume 2 / Jorge Luis Borges. - São Paulo : Globo, 2OOO.

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