quinta-feira, 24 de março de 2011

O Cativo

Em Junín ou em Tapalquén relatam a história. Um menino desapareceu depois de um ataque indígena; disseram que os índios o haviam roubado. Seus pais o procuraram inutilmente; anos depois, um soldado que vinha do interior falou-lhes de um índio de olhos azuis que bem poderia ser seu filho. Por fim, deram com ele (a crônica perdeu as circunstâncias e não quero inventar o que não sei) e pensaram reconhecê-lo. O homem, trabalhado pelo deserto e pela vida bárbara, já não sabia ouvir as palavras da língua natal, mas deixou-se levar, indiferente e dócil, até a casa. Aí ele parou, talvez porque os outros parassem. Olhou para a porta, como se não a entendesse. De repente, abaixou a cabeça, gritou, atravessou correndo o vestíbulo e os dois longos pátios e se meteu na cozinha. Sem vacilar, enfiou o braço na enegrecida chaminé e apanhou a faquinha com cabo de chifre que escondera aí, quando menino. Seus olhos brilharam de alegria e os pais horaram porque tinham encontrado o filho.
Talvez a esta lembrança tenham seguido outras, mas o índio não podia viver entre paredes e um dia foi em busca de seu deserto. Gostaria de saber o que sentiu naquele instante de vertigem em que o passado e o presente se confundiram; gostaria de saber se o filho perdido renasceu e morreu naquele êxtase ou se conseguiu reconhecer, ao menos como uma criança ou um cão, os pais e a casa.
Jorge Luis Borges
Obras completas de Jorge Luis Borges, volume 2 / Jorge Luis Borges. - São Paulo : Globo, 2000.

sábado, 12 de março de 2011

Nós que aqui estamos por vós esperamos

Foi bem programada a visita, não sabíamos para onde nos levariam. Era estranho, o lugar parecia meio bucólico e distante do centro e do calor da cidade. Na entrada já latejava no semblante do lugar uma imensa placa de metal, que por sinal estava a ser corroída pela feroz sede da ferrugem. O nome era LEAN. Pensei ser homenagem a algum morador ilustre da região ou algo parecido, mas era uma sigla: o que nos faz uma sigla? Por vezes deixa-nos numa estranha sensação de que o mundo necessita a todo instante de compactar-se. E foi o que houve. Aquele mundo, frio e compenetrado, a solidão que se instalava em meio aqueles móveis, a miseresa de afeto e atenção das quais aquele Lar, ardentemente, clamava.



A sigla significava: Lar Evangélico do Ancião. Longe de pretensões religiosas, me sentia convicto de que naquele lar o que menos se respirava era paz (interior). Havia um tremor dentro dos mais andejos corações que ali se faziam presente; corações esses que já amaram, odiaram, detestaram ou, até mesmo, mataram (quem sabe). Era uma avalanche de desejos que se reprimiam e se encontravam comprimidos naqueles quartos fechados e sufocantes.



Logo na entrada, houve alguns colegas que se excluíram da visita. Já notava-se que o odor forte de urina, que escapava das frestas das janelas e portas, queimava-lhes o estomago. Confesso, pois não quero mentir, nem mesmo para mim, que o cheiro também me incomodava um pouco, mas não foi empecilho para adentrar.



Entrei, firme e vacilante nem sabendo ao menos o que estava a minha espera. Quando dei por mim, já estava percorrendo os mais diversos quartos que adornavam o lugar. O quartos, na maior parte das vezes, assombraram-me. Um pouco escuro e alcoolizante , o cheiro da urina ali se fazia mais intenso, e castigava-me o nariz de forma a por dentro de meu fosso nasal brasas de fogo. Não quero com isso (toda esta minha descrição e apavoramento) denunciar maus tratos, muito pelo contrário, o serviço, por parte do asilo, estava sendo cumprido com a mais tranqüila sapiência. Mas, o que latejava em meu peito era o quanto a solidão se aglutinava naqueles olhares; teve um momento, em um dos dormitórios, que fixei bem o olhar contra uma velha e espaçosa senhora, ela tinha as pernas roxas e grossas, as veias pululavam feito carne viva. Quando olhei bem claramente, vi que em seus olhos corriam rios, eram verdes, me confundi; eram feitos de água? Logo, soltou um grave sorriso para mim, e eu, convenientemente, lhe retribui o esticar de lábios. Senti-me como que um homem feito, completo, por ter sorrido para uma senhora. E não parei, sentei-me na beira da cama de um senhor, magro, mulato e com o olhar enfeitado pelo medo. De início, não lhe disse nada, somente lhe observei uns instantes; logo, ele olhou pra mim e disse: “oi, meu nome é José!” Eu me senti desprevenido e não tive resposta imediata, como ousa aquele velho interromper um momento singular de admiração alheia? Como eu estava sendo tolo, nunca fui tão tolo. O corpo que, justamente, parecia a ser contemplado era o do velho, ele possuía o pleno direito de admitir todo e qualquer olhar. Sobrou-me apenas, reciprocamente, dizer meu nome: “prazer, eu sou Thiago!”.



Em outro momento, uma outra senhora, que estava no quarto dos fundos, logo que nos viu entrar, como se fossemos parasitas a lhe roubar os últimos pulsos do coração, nos olhou ressabiada, mas logo notou a presença de humildade em nós, e disse: “oi, sou Ana Maria enfermeira aposentada!” Confiou-nos a sua antiga e já inválida profissão!



Eu queria falar, ardia em minha língua um poder letal de fazer com que tangesse os dentes, mas não fui capaz. A cada passo que cumpria era uma invalidez interior, uma catástrofe espiritual. Lançava apenas relâmpagos de olhares e desejo. Os velhos, cada um em suas convulsões, hesitações, permaneciam ávidos, latia em seus olhos uma luz, uma estranha sensação de felicidade; a espera que um retorno eterno; a aguardar um gesto misterioso que sustentasse em si a promessa de tal regresso.



Deixamos o lugar. Quando saí, senti o ar tão fresco e saboroso que me lancei em seus braços de modo a abarcar em mim a mais pura e doce razão de viver. Tocava meus pulmões, purificava os brônquios; naquele instante caberia em meu peito toda a brisa que beijava a superfície dos arbustos.



Compartilhei por um instante, ainda, com a enfermeira de plantão, uma ponta de prosa. Curioso e sedento por saber das investidas dos velhinhos, lhe embriaguei de perguntas. Perguntei como era o trabalho, coisas típicas e despretensiosas. Ela apenas disse que havia noites em que o serviço era calmo e outras em que era mais agitado, mas nada que desanimasse. Senti nela uma extensa calma; era calma, sua voz saía feito uma canção de ninar de cristal. Assim, uma colega se aproximou e lhe deu um abraço, folheou-lhe as costas com os dedos e lhe sussurrou algo ao pé do ouvido que no momento não acoplei. Benevolente, agradeceu, incessantemente, a visita e os donativos. Restou em mim a promessa de uma nova visita, sem data e marcações. A própria brisa, que purificava os ares, cantava em meus ouvidos uma incompreensão, e nem mesmo compreendia as minhas certezas (se é que havia alguma).



Chegando ao ônibus, que nos conduziu até lá, fiz algo que já não fazia há tempos, e nem lembrava-me da última vez: uma prece. Mal sabia para quem estava a direcionar aquele gracejo, e nem mesmo possuía um ponto cardeal apropriado. Somente pensei: “continuem a fabricar gente como essa enfermeira”.

sexta-feira, 4 de março de 2011

Placebo

Quando o corpo e, principalmente, a cabeça já não trafegam muito bem pelas vias da vida, se faz necessário a presença de um profissional que esteja apto a colocá-los nos eixos novamente.

A título de exemplo, esta nota traz alguns detalhes e experiências vividos por mim. E seu inquieto objetivo é demonstrar o quanto estamos vulneráveis e subjugados por reagentes químicos.

Ontem, ou melhor, sempre, acompanho uma tia ao psicanalista. Tia Eugênia sofre, literalmente, de TOC, aquela doença que envolve um misto de sentimentos e desejos absurdos, por vezes esquisitos e miseráveis.

Dr. Eustáquio, o terapeuta, é um indivíduo especialmente “ritualístico”; antes, eu até pensava ser ele um descendente de ciganos com todos aqueles adereços e símbolos secretos, desencadeando em todo o meu corpo um ritmo, quase que, subliminar. Significativamente, é simpático; atingiu o topo de toda a serenidade, a idade da qual dizem ser a idade do homem, a cinquentena; é calmo, mas isso não diz, necessariamente, que seja bom. No entanto, está sempre pronto a ajudar quando for preciso. Segundo as lendas que transcorrem pela cidade, seus colegas de ofício, terrivelmente, lhe invejam. Incapazes (ao contrário dele) de realizarem exíguos milagres, pois não contam com uma áurea tão habilidosa e tamanho intelecto.

Agora, me recordo de quando acompanhei a minha tia em sua primeira consulta, e lembro-me o quanto o doutor ficara surpreso com toda a exímia descrição de início de tratamento. Sutilmente, com um tom de indiferença, respondera o clínico, após todo o monólogo travado pela paciente: “pois bem, não farei milagres nem coisas parecidas, apenas lhe ensinarei a conviver com o seu problema; o amará tanto, assim como Borges se orgulhou de sua cegueira e Camões de seu braço perdido”.

O consultório é característico a uma câmara de ar fria, muito agradável e, como não poderia deixar de ser, cheira a substâncias indecifráveis ao faro humano, não sei muito bem o que essas secretárias guardam nos armários ou expelem no ar. Bem firme e imponente na parede está posto como uma simbologia milenar de culto, excessivamente, anômalo, uma figura ilustre e sensitiva aos pensamentos subterrâneos alheios, o pai de toda a desmistificação do inconsciente, Sigmund Freud. A secretária, nada atípica, nos recebe sempre como uma secretária propriamente dita; e como a danada alcançou tanta beleza? Fico apaziguado só em olhá-la (poucas conseguem atingir tanta formosura). E nessa irrisória ilusão, tia Eugenia se transforma em uma arqueada e convalescente missionária ao adentrar o recinto, devota de todos os ensinamentos, profecias e filosofias do clínico.

Realmente, no cúmulo do desespero humano pela busca de uma solução que possa vir como uma chuva torrencial e erradicar toda a seca mortífera da alma, crê-se muito no vaticínio médico, no discurso que, imbuído na parede, mais precisamente aquele filete de papel que confere ao indivíduo o aval de desbravador das incertezas e incoerências humanas. E é, via de regra, uma verdade inalterável. Para ratificar essa proposição, numa outra ocasião, tia Eugenia dizia ao médico que não estava a cumprir rigidamente com os horários da imersão dos comprimidos que lhe são dedicados. Rapidamente, Dr. Eustáquio lhe passou um belo e intransigente sermão: pois não haveria desculpa que rolasse por sobre a face da terra que lhe fizesse acreditar que a paciente deixou de tomar os devidos remédios. E disse mais, disse que remédio é um sacrifício do homem, deve ser administrado com a maior precaução possível, porém “sem fé nada da pé”.

Eu nem acredito muito nessas conjeturas, mas quem sou eu? Nem diploma tenho. E (voltando a fatídica repreensão) para completar o momento do grande parênteses empregado pelo médico, empertigada pelo caduceu, completou o clínico: “remédio é igual a água benta, se não tomar com fé de nada adianta”. Longa certeza, no tempo em que muito se diz sobre “efeito placebo” essa moda está, realmente, em voga. E parece que tia Eugenia levou isso ao pé da letra. Nunca mais deixou de lado um comprimido se quer, se converteu a uma lunática drogada, e, em todas as noites, após o convicto diálogo com os anjos, ingere todos os comprimidos, um por um, cada qual em sua sincronia deglutiva. Bem? Se lhe faz bem não sei, mas a única certeza que tenho é que todo este escravagismo pelos remédios só lhe traz longos e plácidos momentos de quietude, e é até um grande sacrifício olhar para tia Eugenia em seu momento de desterro químico. Ultimamente, tia Eugenia se encontra bem mansa; sem alterações de humor e sem taras por táxis amarelos. Já passei um bom bocado com todo esse desregramento psicológico. No fim, acabo por enxergar a verdadeira "raison d'être" de minha tia, e não são tratamentos, remédios e psicanalistas aproveitadores, mas sim um par de chinelos, uma tampa pra sua panela, uma unha pra cortar ou desencravar, enfim, um marido. Só isso poderá salvar tia Eugenia dessa desesperadora síndrome. Mas a minha tia nunca desiste, nunca se aquieta, vive com grande furor a rabiscar os anúncios novelescos dos jornais. É uma grande piada essa procura por um companheiro. Ela, simplesmente, se sente como que se ainda tivesse na flor de toda e qualquer juventude, escolhe a dedo cada pretendente, mas, no final, tudo acaba por ser uma grande e tenebrosa ilusão.

Já sem ânimo, tia Eugenia acaba por desistir de toda esta tresloucada busca. Mas, posso estar estonteantemente enganado com as minhas deduções, pois graças ao bom menino Jesus, tudo acaba bem, apresar de toda frustração amorosa. E o efeito substancial que lhe provoca os medicamentos, lhe traz conforto, alivia e, a cada enclausurar do sol e o embotar da noite, ela põe por sobre a mesinha de cabeceira o seu copo d’água e sua caixinha inseparável de remédios; e, pobrezinha, vive por acreditar que todas as combinações químicas das quais compõem aquelas drágeas são, realmente, hóstias sagradas depositadas em sua boca pelos querubins da “prophýlaxis”.