terça-feira, 13 de novembro de 2012

O Sonho do Livro



Nos últimos dias tenho me deparado, constantemente, com fatos que versam sobre o fim do livro. Sim, o livro, aquilo que também, em seu conjunto, é chamado de universo. É certo que entro em pânico, meus ralos e poucos pêlos eriçam-se e não sei o que mais pensar. E isto é só por sentir que eles desaparecerão em algumas décadas, como mesmo afirmam certos arautos da informática.
Seguramente, tudo não passa de um enorme equívoco e exagero, pois se fala do fim do livro, não do mundo... Mas, por outro lado, se eles são sinônimos de universo, há que manter guarda.
Não quero discorrer sobre os pormenores da situação, o que dizem, em específico, seus defensores e inquisidores. Diante de tal desespero, resigno-me e aceito o brutal destino que os deuses me reservaram.
Nesta semana, voltando para casa após uma triste jornada de suor e cansaço, passo em frente à biblioteca da cidade. Lugar onde já sou fiel frequentador, desde os tempos em que as enciclopédias eram as melhores companhias para um homem curioso. Eis que surge-me uma saída, que, nem mesmo, ao longo de toda essa discussão pelo fim do livro, seus panegiristas parecem ter pensado. Já que o prelúdio de um fim para os impressos se faz presente, não medi esforços, e comecei a fomentar o desejo de recolher e salvar todos os que eu encontrasse pela frente. Pensei, no exato momento, de passagens que, nos pretéritos da memória, fazem-se tão presentes como as relações entre uma causa e um efeito. Não sabia ao certo como faria, mas, o que resta a um homem comum, senão aceitar aquilo que o acaso lhe impõe? Adentrei ao simples recinto. O odor das prateleiras e suas leais instruções faziam-me inteiro e, ao mesmo tempo, impotente. O apelo inaudito dos volumes gerava em meu ouvido interior um embate entre centenas de milhares de páginas e a brevidade da vida. Angustiado pela pródiga presença das prateleiras que se levantavam diante de mim, esforcei-me para lembrar a ordem e o número de alguns exemplares. Comecei, assim, a tatear o dorso de suas colunas.  Considerei, então, que estava no fim dos tempos, e que meu destino de único sacerdote da eternidade me daria o direito de intuir sobre o fim dos que estavam a um passo de mim. É certo que deveria tomar precauções, um cuidado excessivo com a ética alheia é imprescindível. Chegando mais perto, fui acalorando ainda mais o desejo, procurando espaços vazios por entre as estantes e observando passos. Sorte, claro, que a biblioteca é estruturalmente humilde, conta apenas com duas secretárias que se revezam em atender os pobres frequentadores. Além do mais, também não contamos com monitoramentos de segurança, o que foi primordial. Outro cuidado peculiar é sempre entrar com alguma sacola em mãos, evidente que se deve ter um local bem discreto para se levar os livros, pois não há possibilidade de sair com um exemplar sem antes passar pela agenda de registros e empréstimos. Voltei à reflexão anterior. O fim, o incêndio mortal da memória e das faculdades humanas. Como mesmo apregoou César, pode-se, sim, afirmar que muitas delas são memórias de infâmias, mas o ato da Criação é uma sentença mágica, capaz de conjugar esses males. Assim fui vencendo os anos, a areia secular do tempo, a fatalidade de se povoar o espaço; fui entrando em posse do que já era meu. Do mundo não se pode descer, de uma biblioteca não se pode sair. Agarrei o primeiro volume, não soube, de momento, o título, mas senti que deveria trazê-lo, pois também era filho da imensa legião. Aproximou-me um preciso esplendor, assim como sente um náufrago a ardência em suas veias de se avistar um navio em alto-mar, e com ele a possibilidade de salvação.  
Dediquei longas horas para aprender a configuração e ordenamento das prateleiras. Cada aprendizado me concedia um ponto de luz, e assim pude fixar na mente as regras e formas que delineavam todo o conjunto de armários do espaço. Não falarei da fadiga que proporcionou este meu labor. Saí de forma natural, despedi-me de uma das simpáticas secretárias, sem ao menos desconfiar que ali, naquele instante, havia ocorrido um desvio de propriedade para o começo do bem da história humana.
Ao sair, senti-me perdido por haver perdido um espaço no tempo. Na rua em frente, abriu-se um labirinto, segui pensando estar a caminho de casa. Enternecido, pensei que poderia formar todas as coisas que foram em coisas que serão, pois as causas não me bastam para entender o tudo, interminavelmente. Folheei as páginas do livro em minhas mãos, por entre as ruas, avistei as origens narradas ali. Vi montanhas, águias, correntes de ar e água. Uma panaceia  aquela mesma com a qual se cura a felicidade dos homens, fazia-se presente em meio a invariável paisagem urbana. Vi cães que se desfiguravam em rostos humanos, vi Deus sem a fantástica face por detrás de um ponto de ônibus; vi Píndaro na figura de um jornaleiro cantando a expressão máxima do tempo: a efêmera composição da carne e a perene força da mensagem; vi o caule de um cometa que formava uma só verdade. Do entendimento de tudo, consegui também entender a escrita do livro.
Chegando ao meu apartamento, confundi gradualmente tudo com meu destino; formávamos um só, o livro e eu, e um homem, afinal, é feito de suas circunstâncias.  Do incansável labirinto eterno, assim pude desfrutar com precisa pertinência do exemplar roubado. Não havia pensado até então em roubo, e nem mesmo o considero desta forma, nem sei o porquê de tê-lo escrito. Morra comigo o mistério que está escrito nesta missão. Quem sonhou o universo? Quem desenhou os espelhos? Quem pensou os ardentes desígnios que poderá ter um homem?  Este homem, de certa forma, sou eu. Que importa as formas e o sentido figurado da vida, se agora perco parte de minha existência dedicando-me a exceder a astúcia da morte? Não importa a fórmula que sou feito. Se sou uma formiga em meio a um castelo de inconveniências, de uma nação que importa daquele outro lado idéias e efeitos que se voltam contra os homens, desprezo, e sigo assim, multiplicando-me até encher o cárcere do tempo. Dispenso qualquer aproximação com a verdade, se é que tal aproximação seja possível, mas não ignoro que, mesmo inconscientemente, ensaiei encontros com a terrífica verdade do tempo. Os sonhos são as linhas que costuram o mundo, e este sonho está dentro de outro sonho. Sonha-me a eternidade. Seguramente, o caminho que terei de percorrer para salvar os livros é interminável e morrei antes mesmo de despertar para a escuridão de sombras e simulacros, de pobres vozes humanas, do mundo, do universo.   

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

O vazio de ser


Mão há como negar. Alguma coisa tem mudado e não posso mais ignorar. O que procuro força-me a escalar uma série de andaimes interiores, e você sabe quão incômodo é ter andaimes interiores? É o mínimo que desejo. Minha voz e pensamentos revelam-se de forma estridente, não posso mais suportar essa angústia.
Passo por uma via e me deparo com o absurdo do mundo. Olho em direção ao cemitério da cidade e vejo uma coleção de pequenos castelos de concreto, o pó do mundo ali reside tranquilamente em meio aos desastres cotidianos que se vão seguindo dia após dia. Quem saberá de onde vem esse desejo intenso de pular de uma ponte, de pular para dentro de si. É o infinito, não cabe. O desejo é o infinito, eu sinto. Até o medo da morte se evapora, e torna-se uma longínqua idéia de pavor. Não tenho medo de morrer. Nesses dias não tive se quer pena de mim mesmo, quis me atirar dentro do forno com o gás ligado, deitei a cabeça sobre a estreita grelha e permaneci por alguns segundos. O cheiro do gás foi renovador. Até certo ponto, asfixiou todos os pensamentos mórbidos que me ocupavam espaços desnecessários na mente, mas que logo deram espaço a outros mais aterradores ainda, houve uma mutação.
O cheiro do mundo.  Enquanto não me livrar desse último desconforto, continuarão a lançar-me chorume na cara. Os dias se escorrem lentamente aguardando com que eu tome a decisão. Tomar essa decisão é suportar a humilhação a qual todos, um dia, iremos passar. Subo as escadas que dão sentido a minha casa, e subo pensando que estou em direção ao inferno. Subo numa cadeira onde, do alto teto, há uma corda adequada ao formato do meu pescoço, pronta para o pulo final. O pulo é esse. O pulo para o infinito. Pular da cadeira, talvez, seria a síntese desse desejo do infinito que me percorre. Entro no quarto e vejo estatuetas de pensamentos passados. Percorro, cuidadosamente, cada idéia não manifestada, cada frase engolida, cada palavra mastigada, cada pensamento aprisionado. Muita coisa se passa perante essa aldeia de pensamentos petrificados. Erguem-se estátuas de antigos líderes e ídolos, admirados em algum momento da vida. Imponentes, destemidos, seus olhos sem retina, suas mãos sem unhas, seus pés atracados ao chão, imobilizados pelo tempo, lanço em direção a estes um martelo, e quebro-lhes cada canto, cada membro. A destruição.
Tenho angustiado a velha criança. Mas, penso, a velha criança está desaparecida, como as milhares que se perdem de seus pais todos os dias. A minha velha criança se perdeu em meio ao tumulto do mundo. Está decepcionada, ou decapitada em algum canto, em algum país distante, servindo de alimento para alguém. Minha ansiedade é o começo do meu fim. E o meu fim é o começo do meu começo, é aqui que começo a viver, a partir do meu fim. Vivo momentos intensos, e sei que estou no fim. Toda a vida se passou e eu não passei, permaneci sempre enclausurado dentro do meu quarto, observando a auto-estrada, o velho martírio de ser alguém preenchido por uma monotonia de pensamentos vazios. No passado, o bairro em que moro foi um centro de prostituição. Quem sabe o terreno onde se encontra minha casa já não deu espaço para uma grande casa de cortesãs? As putas já gozaram por aqui. A libertinagem já foi palavra de ordem por essas bandas. Agora restam, resignadas, as velhas mortas na beira da calçada, com seus assuntos cotidianos e tediosos. Todos aqui julgam viver com intensidade, mas poucos sabem o que é percorrer seus próprios alpendres.
Encontro algo para revelar essa angustia. A certeza que estou enlouquecendo ou ficando cada vez mais lúcido. A lucidez é um preço que se paga quando enlouquecemos. Os loucos são lúcidos que se abstêm de não reproduzir o reproduzível. A lucidez é amarga e nem todos poderiam suportar seu peso, só os loucos são capazes de viver sob o domínio de idéias contraditórias. Meu passado está em meus bolsos, e me pesa como pedras. Aproveito o peso, aproveito as marteladas em direção ao chão, em direção ao pulo, e perco absolutamente o medo de mergulhar nas asas lamacentas desse rio.