quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Oito de agosto, 2025

Num pequeno café, que abarcava três cômodos do quarteirão, deparei-me com um velho amigo, K. Com um olhar meio distraído, perguntou-me:
“- Como tem passado, Jacob?”
“- Indo, como de costume. O que posso dizer? Além da sucessão de desgraças das quais já estou acostumado, os labirintos, os livros sem letras... Nada disso é novo.”
“- O que houve? Especifique.”
“- Ah, não sei se foi sonho, talvez fosse um pequeno inferno, um inferno pessoal, creio. Tenho lá minhas dúvidas se, fosse minha cabeça um teatro, ela não teria especialidade em produzir peças trágicas.”
“- Sim. Quer dizer que tiveste um sonho noite passada?”
“- É, propriamente. Deixe ver. Talvez seja o suicídio um descuido pessoal. Talvez seja por isso que tenho passado. Descuidos. Minha vida está, atualmente, perpetrada por descuidos. Mas, com paciência, relato o ocorrido.

Estava eu a vagar por entre as ruelas da cidade. Não sabia meu paradeiro, não sabia em que rua estava, mas a única evidência era um pedaço de papel que trazia à mão, indicando uma espécie de reserva num tímido hotel ao fundo da estação ferroviária. Chegando a recepção, dei com uma secretária de aspecto mórbido e insolente. Com um gesto mecânico, apontou para o caderno de reservas onde eu deveria assinar para confirmar a hospedagem. Aí, meu caro, inicia todo o jogo labiríntico pelo qual passei nessa infundada noite. Quando firmei a caneta por sobre a superfície da agenda, percebi que meu nome já constava ali; e, pasme, com minha própria grafia. Um pouco trêmula, confesso, mas, senti que os indizíveis traços, de certa forma, pertenciam-me. Por isso, digo, nunca saberei se isso se passou dentro de um jogo de sonhos. Talvez eu já houvesse sonhado aquela situação em alguma outra noite de junho, mas, seguramente, não saberei. Até o momento, alguma coisa se moveu dentro do meu peito. O coração por sair pelo esôfago? Talvez. Mas senti que era algo mais sério, pensei: alguém se passou por mim, ou eu, no exato momento, estaria usurpando o lugar de alguém, interceptando algum outro sonho qualquer? A respeito, conjecturei sobre o que meus difamadores, que não são poucos e menos patéticos que eu, acham de mim, que sou um impostor - o que, agora, não é impossível de ser uma verdade. Então, fingi passar a caneta pelos traços já rabiscados no caderno, e devolvi o tinteiro à secretária, que, com a língua presa aos dentes, disse, “quarto 22”. Era o que eu temia. Parecia que algo em meu íntimo rogava a Deus, a um indeterminado Deus, a qualquer Deus que não fosse aquele o número do quarto. Subi as escadarias. Afoito, percebi que o recinto já se encontrava ocupado. Adentrei, cauteloso, e vi um alguém sentado a cama, de fronte para a porta central. Resignado, olhando em sua face um pouco cansada, um pouco pálida, disse: "lembro-me de rostos do ocidente e do oriente, mas não estabeleço relação com esta cara cansada." Infausta servidão! Era eu. Um pouco pálido, um pouco mais velho. Eu. Depois, ao notar minha chegada ao alpendre, virou em minha direção e disse: "Tudo isto é um delírio?" Eu, contemplando novamente sua face, não disse nada por um longo tempo. “Não tenha medo, Jacob, eu sou você e você é eu, porém apenas com certa disfunção de tempo, mas somos nós. Três noites tenho caminhado para entrar em teus sonhos. Gostaria de conversar, por isso estou aqui. Primeiramente, na verdade, isto não é um sonho. Estamos em 8 de agosto de 2025. É certo que não consigo entender, neste momento eu, acordado, sou você, e você dorme tranqüila e profundamente em sua casa na rua Pisco. Por sinal, não sou apenas um sonho dentro de um sonho, sou tua consciência dentro da realidade”. Observava o quarto como naquelas tardes de domingo quando minha vida se apresentava tão triste quanto uma seção de psicanálise. Sentava-se, levantava-se. Não sabia se interpor por entre os móveis. Logo, numa ruptura, disse. “Não poderás calcular o efêmero em sua vida. És mais intermitente que um trem, ou melhor, até mesmo os trens têm pontos fixos e lugares precisos.” Parecia-me que estava pondo a si mesmo à prova. Depois de certo tempo, já não conseguindo segurar as pernas, escorei-me à cama e repousei no primeiro assento. Olhando pela vidraça, o jardim esfumaçado pela neblina, ele disse em voz lenta, como se estivesse a repetir trechos ontológicos de Shakespeare e parábolas messiânicas: “não direi nada a respeito, que os mortos enterrem seus mortos. Não tenhas medo, Jacob, isto não é uma culpa pessoal, ponha-a em qualquer fato corriqueiro e cotidiano. Não é preciso ser Borges para se encontrar dentro de uma sucessiva e fantástica interposição de espelhos.” Da janela encravada ao lado direito do quarto, vi uma sombra fantasmagórica e irregular atravessar as cortinas de seda. Um grito interno incorreu-me, abafado e incrustado dentro de meu estômago. Senti que também morria. Quanto mais se afastava, mais sentia-me incorpóreo. Minha pele, infértil de todo e qualquer sentido, não mais suportava a doce pluma da morte. Não vi nada, a neblina invadiu todo o quarto e, no mesmo instante, o mesmo se pôs a rodopiar e girar de forma que eu não conseguia estabelecer uma órbita permanente. Após, ergui a cabeça em direção a porta, olhei por entre o vão e estava ali, à espera que eu dissesse algo. “É deplorável que tenhas uma vida descolorida e igual, como a palma de uma mão. Não procure torná-la menos suportável, Jacob. A morte usa-te constantemente." Numa rajada de segundo, ele desapareceu. Ao sair do hotel, olhei em direção ao velho e deteriorado chafariz do pátio principal. Nada me aturdia. Senti, no ato, que muitos outros sonhos esperavam-me até aquele dia.

Acaba-se aqui o sonho. Veja só, coisa mais estranha, K.”

“- Pois sim, amigo. Muito estranha, e, arriscaria dizer, como todos os sonhos, fantástico!”

“- K, poderia eu arriscar em dizer que meu suicídio se dará em 8 de agosto de 2025?”

“- Quem saberá, Jacob? Creio que nem mesmo tu saberás. É só um sonho. Quer saber? Marcamos uma partida de pôquer à noite?”

“- Claro. Se trouxeres vinho..."

“- Combinado.”