sábado, 5 de fevereiro de 2011

Aversão

Havia um tempo em que uma terrível carga aracnofóbica circundava todas as minhas ações e movimentos. Caminhava periciando tudo e todos. Esta tremenda fobia por aranhas começou bem cedo, lá nos meus oito anos de idade. Reza minha mãe que, deitado tranquilamente sobre a cama, batizado por Morfeu, nem imaginava que esta petulante criatura, com as patas veludosas e o corpo cabeludo, poderia estar a alguns centímetros de meus pés. Quando mamãe se deu conta, o bicho já estava se apossando de meu esquio corpo. Um estrépito grito acudiu-me, e quando me vi, estava por sobre a pele uma colossal e monstruosa tarântula. A partir de então, não mais passei noites em sossego, e não mais consegui me livrar de tamanho medo. Estava presente em tudo. Um dos piores momentos, acredito, era na escola, mais precisamente as aulas de Biologia Anatômica. Professor Gervázio, de um corpo e voz tão estranhos quanto o nome, venerava incessantemente aquele insípio laboratório que tanto me aterrorizava. Na verdade, todos idolatravam o lugar, menos eu. Os meus colegas, vidrados diante dos potes que resguardavam disformes e pavorosos animais de todos os filos e raças, caprichosamente, adoravam estar ali. Eu sempre me mantinha longe e secreto, sem conversas e amostras, pois somente um escorrer de olhar por aqueles recipientes, e o meu sangue já logo esguichava assombramento e depressão. O curioso foi o modo de como esta tenebrosa fobia se esvaiu, assim mesmo como chegou.

Num fim de tarde, sentado por sobre uma cadeira de balanço em minha sala de estar e lendo mais uma edição de “Verdade no Asfalto”, avisto por entre o vão da porta uma aranha. Ela, por sinal, era enormemente pré-histórica e, carregava na dianteira, uma imensa anca. Não suei frio como de costume, somente senti um pequeno pavor, e por alguns minutos o meu coração palpitou desaceleradamente. Eis que me surgi uma idéia, fantástica por sinal. Resolvo que já era hora de acabar com toda aquela frescuragem – pensando nos varões da família que, possivelmente, estavam a desencadear um frenético rebuliço em suas covas, conclui: “Chega disso! Esse bicho é só mais um a andar por sobre o mundo, assim como outros bilhões.”. Cismei, então, em brincar com o meu algoz. E brinquei.

Desci até a dispensa e lancei mão a uma vassoura, regressando a sala, ela ainda permanecia lá, imóvel e intacta. Fiz com que seguisse um itinerário estranho e atordoado. Ela andava de um lado para o outro apoiada pela vassoura. Da sala passou pra cozinha, da cozinha pro banheiro, do banheiro pra sala, e, assim, retornamos a cozinha novamente. Quando lhe dei um instante de descanso, percebi que já não mais estava sóbria como antes; intermitente, seguia trôpega por entre os ladrilhos. Diabolicamente, pensei: “farei com que fique ainda mais bêbada do que já está, e pagará pelos males de sua raça” - todos esses anos de prisão psicológica e paranóicas manias entorno deste propósito inútil. Calmamente, fui até ao armário, mirei a garrafa de álcool. Voltando a presença do desvalido animal, que naquele momento era ilustre, fardei todo o seu pestilento corpo com o líquido da garrafa. Rapidamente, ela, inquietante, resolve traçar seu próprio caminho, eu a deixei seguir em frente. Pobre, nunca imaginei que diria isso um dia, mas tive pena. Conseguiu avançar poucos passos através daquela sincronia mórbida de patas pegajosas. Findou-se ali mesmo a vida de mais uma aracnídea da face da Terra. Sucumbida, fardada ao desespero de ser mais um ser sem razão pelo mundo, não fazia idéia do que lhe arrastara até ali.

O melhor de tudo, não foi a morte da aranha, que foi morta, velada e sepultada, mas foi o findo de minha fobia. – poderá até os defensores dos animais a denunciarem-me aos órgãos competentes, mas, sei que estou com a consciência limpa, e cumpriria minha pena sem remorsos. Pois matei uma aranha, e sou um assassino de animais e de fobias. E isso me pareceu um choque terrível que eletrizava cada partícula do meu sangue, parecia-me que estavam a dissecar todo o terror e angustia sentidos desde o início dessa louca e desvairada repugnância. A partir daquele dia, não mais temi as aranhas e a nenhum outro bicho. Mas, como toda partida deixa marcas e mágoas, permaneço entristecido por não mais uma aranha se atrever a visitar minha humilde residência. Creio ter sido convertido a uma espécie de Basilisco, com um olhar negro e venenoso. Por um lado, fico um pouco estranho com esta sensação de não mais poder brincar com esse tipo de animal tão peçonhento e aniquilador do medo. Parece-me que o feitiço virou contra o feiticeiro, e, agora, existe mais uma fobia a ser incluída na lista da CID da qual compete a aracnologia, thiagonofobia.

2 comentários:

  1. Sensacional. O mais interessante é a forma como vc escreve, acabo não tendo palavras para descrever, sinto-me limitada, afinal, o exímio escritor aqui é vc! Muito bom mesmo, parabéns!

    Obs: Cuidado com o IBAMA rsrs

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  2. Meu Deus, o que tenho para falar sobre esse texto?
    Só que está fantástico e eu tenho o privilégio de ser sua amiga e poder aprender com você essas suas técnicas de prender o leitor mesmo usando palavras grandes e difíceis.
    Estou lisonjeada de ter o nome de um poema meu no meio desse texto tão bom. ahahaha
    Parabéns, Meu Bem.
    Beijos de Sherazade.

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