quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Um sonho vão



O sonho durou cerca de vinte minutos, ou trinta, ou todo um instante de uma vida, não sei. É algo que envolve a existência de Deus.  Se, supostamente, existe, Ele sabe quanto tempo durou meu sonho; se não, ficará essa ulterior porção de imagens a pernoitar por todos os outros sonhos que terei. Fato que não é passível de entendimento e veracidade.
É simples e fatigante. As coisas existem uma única vez, mas num sonho é diferente. Deplorável é minha condição de sonhador, que não sabe, senão outra coisa, sonhar comigo mesmo e variações de minha própria imagem. Meus sonhos são assim, revelam-me coisas passadas e aterradas pelo tempo. Nunca pensei nada de original na vida, sou um simples imitador da realidade, multiplico sonhos por meio de imagens que me são dadas pela configuração do real. Sou uma espécie de ampulheta manipulada pela noite, assim como a sorte e o revés pelas mãos do acaso.
Ocorreu que num dia sem sol e nem sombras, encontrei-me sentado num dos bancos da Praça de Maio. Sentia uma sensação plena de serenidade, talvez estivesse morrendo. Observei ao meu lado a presença de uma intrigante moça. Tudo se passava de forma natural, como se estivéssemos no outono. O clima agradável contribuía para meu elementar medo do impossível.
Olhei mais um pouco, e na outra ponta vi pessoas gesticulando de formas incompreensíveis. Senti que não sabia o que se passava, ou o que estava eu a fazer sentado na praça? Sendo que nunca, ou quase nunca, saio de casa. Quanto à moça, lembro-me ter lançado sobre mim um impetuoso olhar, e de forma perturbadora disse que estava a me achar muito simpático, que meus olhos transpiravam tranqüilidade. Apesar de tudo ter ocorrido rapidamente, penso que minhas olheiras se intensificam com o tempo, posso crer que meus olhos servem de depósito para coisas. Tenho o infatigável costume de transpor os olhos para as coisas, e as coisas para os olhos.
A moça, terna e simpática, soube que naquele instante via em mim um pai, um protetor. Por eu não ter tido filhos, notei que aquela moça era algo de mim, uma parte, uma brutal extensão de minhas carnes.
Acusam-me de misantropia, ou talvez de prepotência, mas é certo que não me sinto um sujeito isolado. Meus difamadores, que não são menos estúpidos que numerosos, dizem que nunca pisei na rua, que tenho aversão à plebe. Fato que não me impedirá de incorrer no agonizante ditirambo dos sonhos.  No instante, sentia que não era pouco, que eu estava em consonância com toda a irmandade cósmica, senti-me um grande irmão do universo. De todos os costumes fúnebres, de todos os carteiros, de todos os moradores de casas com números pares, de todas as pessoas que não sabem o que sabem e que sabem o que não sabem, de tudo o que possa existir no mundo, como, por exemplo, o singular cérebro de uma formiga. Senti-me, em resumo, único. Todos os demais pontos do universo transportavam-se a mim, e depois convergiam na presença da moça.
Após um tempo, inconcebível para minha razão, a moça me beijou no rosto. Suponho (e esta é a única palavra que me é dada por direito neste instante) isto foi a prova que eu não estava sonhando. Sua presença já havia durado demais para ser apenas um sonho. Despertou-me, ao mesmo tempo, uma insaciável solidão, e lembrei-me de como eu, nas tardes de sábado, no solitário saguão da academia, estudava latim arcaico. Sei que meio período de sonho não se passa em vão. Entendi, também, que não podíamos nos entender, a moça e eu, ou que nos entendíamos pelo senso do beijo, ou éramos incompreensíveis um para o outro da mesma forma distante como se apresenta o amor, sempre tão impassível de se compreender como os compêndios de meu avô, onde encontrávamos assuntos tão singulares como os costumes sexuais dos povos balcânicos.
 A situação, ao contrário do que eu previa, não durou muito, pois era absurda por demais. Inútil de minha parte lutar contra uma fantasia e discutir meu inevitável destino. Pois a máquina do universo é simples demais para a complexidade de um sonho.
A moça, como todos, afastou-se. Não mais a vi.
Acordei em meio a um cheiro de mofo. Coloquei um chá no fogo, e comecei a lembrar do que havia se passado no sonho, de como a moça se despediu sem ao menos perceber que minha vida é um gradual desenrolar de peças trágicas. Como um lento derreter de velas, sofro, agora, pela vontade de não sonhar.  Não fui outro depois desse sonho, como tantos outros. Meditei sobre a moça, suas feições ciganas, sua pele mascavo. Batia-me à cabeça uma voz lenta e fraca, e dizia-me que tudo não passava de criação da magia e ordenava-me transformar tudo em pó. Creio que o encontro, ou nosso casual encontro, foi inevitável. Ela me sonhou e eu a sonhei. Sonhamo-nos mutuamente, como assim é, e como assim somos. E, ao fim de tanto conjecturar, recebi um telefonema, de uma voz sem nome, dizendo que eu havia perdido minhas chaves no saguão da academia.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

#Pororoca Literária: Kafka/Saramago

Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Thiago Leite deu por si agachado ao chão como um animal imundo, como se esperasse algum sinal de estupefação para saltar-lhe à garganta. O horror disse, pela primeira vez, "aqui estou", quando avistou, pelo vidro da janela, vultos que pareciam de gente, que saltavam para o vazio como se tivessem acabado de escolher uma morte. Agora o horror aparecia a cada instante ao remover-se, ao olhar para a branca parede e uma chapa de alumínio retorcida que estava a cobrir a entrada para o sótão. Viu refletida uma cabeça irreconhecível, um braço, uma perna, um abdómen desfeito, um tórax espalmado. Apertou bem as pálpebras para ver se os olhos impedissem que tamanho horror lhe entrasse pela mente. Sepultados debaixo de sua cama, sob montes de areia, viu cadáveres em ponto inicial de putrefação. Sentiu em sua boca uma ânsia, e vomitou cinzas, como se de lixo se tratasse. Que tenha conseguido suportar a repugnância que estas horas provavelmente lhe causaram, não pediu nada, não rogou a seus anjos da guarda, nem passou ao ateísmo. Não perdeu a razão, mas soube que se há um mundo, é só um mundo, e é esse o nome que lhe ensinaram a dar, a esta pertinaz e corrosiva câmara de produzir mortos, como ficou demonstrado e desgraçadamente continuará a demonstrar-se. Sentiu-se terrivelmente igual a todos os seres humanos onde quer que estejam e seja qual for o credo, intoxicado por esse pensamento, uma heresia, compreendeu que da besta o próprio homem acabou por fazer do homem uma besta.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

O Sonho do Livro



Nos últimos dias tenho me deparado, constantemente, com fatos que versam sobre o fim do livro. Sim, o livro, aquilo que também, em seu conjunto, é chamado de universo. É certo que entro em pânico, meus ralos e poucos pêlos eriçam-se e não sei o que mais pensar. E isto é só por sentir que eles desaparecerão em algumas décadas, como mesmo afirmam certos arautos da informática.
Seguramente, tudo não passa de um enorme equívoco e exagero, pois se fala do fim do livro, não do mundo... Mas, por outro lado, se eles são sinônimos de universo, há que manter guarda.
Não quero discorrer sobre os pormenores da situação, o que dizem, em específico, seus defensores e inquisidores. Diante de tal desespero, resigno-me e aceito o brutal destino que os deuses me reservaram.
Nesta semana, voltando para casa após uma triste jornada de suor e cansaço, passo em frente à biblioteca da cidade. Lugar onde já sou fiel frequentador, desde os tempos em que as enciclopédias eram as melhores companhias para um homem curioso. Eis que surge-me uma saída, que, nem mesmo, ao longo de toda essa discussão pelo fim do livro, seus panegiristas parecem ter pensado. Já que o prelúdio de um fim para os impressos se faz presente, não medi esforços, e comecei a fomentar o desejo de recolher e salvar todos os que eu encontrasse pela frente. Pensei, no exato momento, de passagens que, nos pretéritos da memória, fazem-se tão presentes como as relações entre uma causa e um efeito. Não sabia ao certo como faria, mas, o que resta a um homem comum, senão aceitar aquilo que o acaso lhe impõe? Adentrei ao simples recinto. O odor das prateleiras e suas leais instruções faziam-me inteiro e, ao mesmo tempo, impotente. O apelo inaudito dos volumes gerava em meu ouvido interior um embate entre centenas de milhares de páginas e a brevidade da vida. Angustiado pela pródiga presença das prateleiras que se levantavam diante de mim, esforcei-me para lembrar a ordem e o número de alguns exemplares. Comecei, assim, a tatear o dorso de suas colunas.  Considerei, então, que estava no fim dos tempos, e que meu destino de único sacerdote da eternidade me daria o direito de intuir sobre o fim dos que estavam a um passo de mim. É certo que deveria tomar precauções, um cuidado excessivo com a ética alheia é imprescindível. Chegando mais perto, fui acalorando ainda mais o desejo, procurando espaços vazios por entre as estantes e observando passos. Sorte, claro, que a biblioteca é estruturalmente humilde, conta apenas com duas secretárias que se revezam em atender os pobres frequentadores. Além do mais, também não contamos com monitoramentos de segurança, o que foi primordial. Outro cuidado peculiar é sempre entrar com alguma sacola em mãos, evidente que se deve ter um local bem discreto para se levar os livros, pois não há possibilidade de sair com um exemplar sem antes passar pela agenda de registros e empréstimos. Voltei à reflexão anterior. O fim, o incêndio mortal da memória e das faculdades humanas. Como mesmo apregoou César, pode-se, sim, afirmar que muitas delas são memórias de infâmias, mas o ato da Criação é uma sentença mágica, capaz de conjugar esses males. Assim fui vencendo os anos, a areia secular do tempo, a fatalidade de se povoar o espaço; fui entrando em posse do que já era meu. Do mundo não se pode descer, de uma biblioteca não se pode sair. Agarrei o primeiro volume, não soube, de momento, o título, mas senti que deveria trazê-lo, pois também era filho da imensa legião. Aproximou-me um preciso esplendor, assim como sente um náufrago a ardência em suas veias de se avistar um navio em alto-mar, e com ele a possibilidade de salvação.  
Dediquei longas horas para aprender a configuração e ordenamento das prateleiras. Cada aprendizado me concedia um ponto de luz, e assim pude fixar na mente as regras e formas que delineavam todo o conjunto de armários do espaço. Não falarei da fadiga que proporcionou este meu labor. Saí de forma natural, despedi-me de uma das simpáticas secretárias, sem ao menos desconfiar que ali, naquele instante, havia ocorrido um desvio de propriedade para o começo do bem da história humana.
Ao sair, senti-me perdido por haver perdido um espaço no tempo. Na rua em frente, abriu-se um labirinto, segui pensando estar a caminho de casa. Enternecido, pensei que poderia formar todas as coisas que foram em coisas que serão, pois as causas não me bastam para entender o tudo, interminavelmente. Folheei as páginas do livro em minhas mãos, por entre as ruas, avistei as origens narradas ali. Vi montanhas, águias, correntes de ar e água. Uma panaceia  aquela mesma com a qual se cura a felicidade dos homens, fazia-se presente em meio a invariável paisagem urbana. Vi cães que se desfiguravam em rostos humanos, vi Deus sem a fantástica face por detrás de um ponto de ônibus; vi Píndaro na figura de um jornaleiro cantando a expressão máxima do tempo: a efêmera composição da carne e a perene força da mensagem; vi o caule de um cometa que formava uma só verdade. Do entendimento de tudo, consegui também entender a escrita do livro.
Chegando ao meu apartamento, confundi gradualmente tudo com meu destino; formávamos um só, o livro e eu, e um homem, afinal, é feito de suas circunstâncias.  Do incansável labirinto eterno, assim pude desfrutar com precisa pertinência do exemplar roubado. Não havia pensado até então em roubo, e nem mesmo o considero desta forma, nem sei o porquê de tê-lo escrito. Morra comigo o mistério que está escrito nesta missão. Quem sonhou o universo? Quem desenhou os espelhos? Quem pensou os ardentes desígnios que poderá ter um homem?  Este homem, de certa forma, sou eu. Que importa as formas e o sentido figurado da vida, se agora perco parte de minha existência dedicando-me a exceder a astúcia da morte? Não importa a fórmula que sou feito. Se sou uma formiga em meio a um castelo de inconveniências, de uma nação que importa daquele outro lado idéias e efeitos que se voltam contra os homens, desprezo, e sigo assim, multiplicando-me até encher o cárcere do tempo. Dispenso qualquer aproximação com a verdade, se é que tal aproximação seja possível, mas não ignoro que, mesmo inconscientemente, ensaiei encontros com a terrífica verdade do tempo. Os sonhos são as linhas que costuram o mundo, e este sonho está dentro de outro sonho. Sonha-me a eternidade. Seguramente, o caminho que terei de percorrer para salvar os livros é interminável e morrei antes mesmo de despertar para a escuridão de sombras e simulacros, de pobres vozes humanas, do mundo, do universo.   

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

O vazio de ser


Mão há como negar. Alguma coisa tem mudado e não posso mais ignorar. O que procuro força-me a escalar uma série de andaimes interiores, e você sabe quão incômodo é ter andaimes interiores? É o mínimo que desejo. Minha voz e pensamentos revelam-se de forma estridente, não posso mais suportar essa angústia.
Passo por uma via e me deparo com o absurdo do mundo. Olho em direção ao cemitério da cidade e vejo uma coleção de pequenos castelos de concreto, o pó do mundo ali reside tranquilamente em meio aos desastres cotidianos que se vão seguindo dia após dia. Quem saberá de onde vem esse desejo intenso de pular de uma ponte, de pular para dentro de si. É o infinito, não cabe. O desejo é o infinito, eu sinto. Até o medo da morte se evapora, e torna-se uma longínqua idéia de pavor. Não tenho medo de morrer. Nesses dias não tive se quer pena de mim mesmo, quis me atirar dentro do forno com o gás ligado, deitei a cabeça sobre a estreita grelha e permaneci por alguns segundos. O cheiro do gás foi renovador. Até certo ponto, asfixiou todos os pensamentos mórbidos que me ocupavam espaços desnecessários na mente, mas que logo deram espaço a outros mais aterradores ainda, houve uma mutação.
O cheiro do mundo.  Enquanto não me livrar desse último desconforto, continuarão a lançar-me chorume na cara. Os dias se escorrem lentamente aguardando com que eu tome a decisão. Tomar essa decisão é suportar a humilhação a qual todos, um dia, iremos passar. Subo as escadas que dão sentido a minha casa, e subo pensando que estou em direção ao inferno. Subo numa cadeira onde, do alto teto, há uma corda adequada ao formato do meu pescoço, pronta para o pulo final. O pulo é esse. O pulo para o infinito. Pular da cadeira, talvez, seria a síntese desse desejo do infinito que me percorre. Entro no quarto e vejo estatuetas de pensamentos passados. Percorro, cuidadosamente, cada idéia não manifestada, cada frase engolida, cada palavra mastigada, cada pensamento aprisionado. Muita coisa se passa perante essa aldeia de pensamentos petrificados. Erguem-se estátuas de antigos líderes e ídolos, admirados em algum momento da vida. Imponentes, destemidos, seus olhos sem retina, suas mãos sem unhas, seus pés atracados ao chão, imobilizados pelo tempo, lanço em direção a estes um martelo, e quebro-lhes cada canto, cada membro. A destruição.
Tenho angustiado a velha criança. Mas, penso, a velha criança está desaparecida, como as milhares que se perdem de seus pais todos os dias. A minha velha criança se perdeu em meio ao tumulto do mundo. Está decepcionada, ou decapitada em algum canto, em algum país distante, servindo de alimento para alguém. Minha ansiedade é o começo do meu fim. E o meu fim é o começo do meu começo, é aqui que começo a viver, a partir do meu fim. Vivo momentos intensos, e sei que estou no fim. Toda a vida se passou e eu não passei, permaneci sempre enclausurado dentro do meu quarto, observando a auto-estrada, o velho martírio de ser alguém preenchido por uma monotonia de pensamentos vazios. No passado, o bairro em que moro foi um centro de prostituição. Quem sabe o terreno onde se encontra minha casa já não deu espaço para uma grande casa de cortesãs? As putas já gozaram por aqui. A libertinagem já foi palavra de ordem por essas bandas. Agora restam, resignadas, as velhas mortas na beira da calçada, com seus assuntos cotidianos e tediosos. Todos aqui julgam viver com intensidade, mas poucos sabem o que é percorrer seus próprios alpendres.
Encontro algo para revelar essa angustia. A certeza que estou enlouquecendo ou ficando cada vez mais lúcido. A lucidez é um preço que se paga quando enlouquecemos. Os loucos são lúcidos que se abstêm de não reproduzir o reproduzível. A lucidez é amarga e nem todos poderiam suportar seu peso, só os loucos são capazes de viver sob o domínio de idéias contraditórias. Meu passado está em meus bolsos, e me pesa como pedras. Aproveito o peso, aproveito as marteladas em direção ao chão, em direção ao pulo, e perco absolutamente o medo de mergulhar nas asas lamacentas desse rio.

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

De repente, leitor


Esta é uma tentativa de reunir idéias gerais sobre a leitura. Baseia-se em fragmentos de discussões que participei em diversas oportunidades. Tentarei sintetizar, de acordo com inquietações pessoais, alguns pontos sobre o tão caloroso tema, formação de leitores. Bem, posso, por vezes, cair em contradição, mas acredito que tenho indulgencias suficientes, pois sei que trato de um tema tão delicado, que nem mesmo a experiência poderia bater um martelo e nos dar uma posição segura e correta. Isto, apenas, se trata a mim, tudo o que vejo, tudo o que penso, brotou unicamente das minhas experiências como leitor, do meu amor aos livros. Se assim estamos acordados, espero dar procedimento.
 A primeira coisa que gostaria de tratar, e tem se propalado feito uma epidemia pela mídia, é o que, não só eu, mas outros interessados pelo tema, chamo de "moralização da leitura". Algo completamente estúpido, e está fortemente sendo impulsionada pelas campanhas de "incentivo”. Primeiramente, é inconcebível essa ideia de "incentivo a leitura". Leitura é uma construção, é algo que só pode dar por via de uma escada, degrau por degrau. Assim como “não podemos nos livrar de um hábito atirando-o pela janela”, também não podemos incorporar nenhuma prática bruscamente, nem mesmo por meio de boa vontade ou “voluntarismos”, necessariamente. Ninguém nasce sabendo ler, ninguém nasce, se quer, sabendo de si mesmo, tendo compreensão plena de sua existência no mundo. Tudo é uma construção, e com a leitura não é diferente. Essa ideia do incentivo é apenas uma estratégia dos pedantes a provocar uma espécie de "apartheid". Recentemente o Jornal O Globo lançou uma “campanha” para o incentivo da leitura de jornais. Um dos lemas, se me lembro bem, era “Quem lê jornal é mais”. Ah, sim. Mais o quê? Disso, não obstante, é comum vermos frases generalizantes (apesar de achar que a generalização é um pressuposto para o pensamento) como "os que não gostam de ler são burros, estúpidos e ignorantes... Os que gostam de ler são legais, interessantes e inteligentes." Posso provar que na realidade não é bem assim. Nem sempre quem nasce em meio a livros e faz parte do mundo da leitura é “sinônimo de virtudes cívicas”. Vejam só os grandiosos exemplos que temos, Bush, o juiz Nicolau dos Santos Neto, empresários matreiros, deputados corruptos, engenheiros inescrupulosos, o desalgemado José Sarney, todos eles fazem parte do mundo da leitura, e mesmo assim, não merecem nossa admiração. Então, por si só, essa moralização é falsa.
 Agora, quero enfatizar algo muito importante. Uma pergunta que nos fica à volta quando, pela primeira vez, algo nos incita a ir em direção aos livros. Para que ler? Por que ler? Posso, com devido conhecimento de causa, arriscar uma resposta. Para atingir, alcançar, que seja ao menos uma fatia, a sabedoria. A sabedoria está impregnada em muitas circunstâncias da vida. Muitos teóricos têm discorrido sobre a sabedoria, ou onde encontrá-la. Um dos meus favoritos, o crítico literário norte-americano Harold Bloom, diz que no mundo de hoje a informação é facilmente encontrada, mas onde encontrar a sabedoria? Outros, como Bertrand Russell, ensaia em dizer que é possível encontrar a sabedoria, na hipótese em que seus aspectos podem ser ensinados por via da instrução formal, propriamente, pela escola, é bem provável que resulte da aprendizagem da história e da grande literatura (entende-se “grande literatura, talvez, o conhecimento e a compreensão das noções gerais da cultura, do lugar do pensamento e do homem na história, ou seja, do conhecimento e contato com os clássicos). A literatura fala da vida. E mais uma vez está implícito nesta idéia a compreensão de que a sabedoria é um conjunto de noções e saberes que nos é oferecido por meio de uma história de vida e toda a relação “bruta” que podemos travar com o mundo.


Quem lê está em permanente contraste com os mais diversos problemas que a humanidade se depara, ou, até mesmo, foge. Homicídios, suicídios, adultério, amor, bovarismos... Tudo isso encontramos nos livros. Os livros são perigosos, porque os melhores livros já escritos tratam de problemas que ninguém deseja enfrentar diretamente. Um escritor é alguém que está em constante "reação" com a vida. E quando digo reação, quero dizer no sentido de "reagir". (e peço desculpa, nos tempos em que vivemos, por usar a palavra "reação" em seu verdadeiro sentido). É como um sujeito que, pela primeira vez, põe o dedo num gatilho e, consequentemente, dispara um tiro. O impulso provocado pela arma pode ser brutal, é uma reação que talvez machuque o sujeito, caso ele não esteja acostumado a manusear armas de fogo. E assim é a vida, uma constante reação. Precisamos voltar com essa ideia que os livros são perigosos, talvez só assim faça com que as pessoas se interessem por eles, efetivamente. E isto não é um devaneio meu, filmes, a própria história, nos dão lições disso. Mas, por outro lado, não compartilho com ideais românticos a respeito da mudança social, ou aquilo que se chama de “transformação social”, que a literatura possa provocar. Como a escrita é uma invenção e artifício humano, intrinsecamente, por si só, é política. Quando escrevemos, pensamos, ou seja, escrever é o mesmo que pensar. Gonçalo Tavares, um grande escritor português, sintetiza essa questão, “se penso, não escrevo”. Se quero transformar a escrita, ou a leitura, em arma, em guarnição, não terei absolutamente nenhum resultado, muito pelo contrário, as vezes tenho um efeito totalmente distorcido em relação a minha primeira idéia. Penso que a crítica literária deve ser pragmática neste sentido.
Ou Talvez José Saramago tenha razão, talvez tenhamos que alvejar certas palavras, quando coligadas a leitura, como: "literatura, compromisso, transformação social..." Devemos colocá-las de molho, cada uma delas, reencaminha-las a um sentido pleno de integralidade, restaurá-la dos desgastes do uso, das vulgaridades da rotina. Pois é bem sabido que não nos consta que a leitura dos "Fioret", de Santo Angostinho, tenha salvo alguma alma das chamas da inquisição, ou tenha lavado as mãos da Igreja, que, por sinal, até hoje, estão sujas...
Outro fantástico atributo da leitura é sua plena intertextualidade. Quanta felicidade não sentimos quando, ao ler um livro, nos deparamos com a inextrincável cadeia de diálogos que encontramos por meio de uma só narrativa, ou quando inferimos e percebemos que os diálogos se entrelaçam, se abraçam. Um livro conversa com outro, mesmo que essa não seja a intenção diretamente. E eu acredito que isso se dá por conta do que chamo de "subjetividade do mundo", aquela que talvez não percebamos diretamente, uma subjetividade que se dá por meio de "conversações indizíveis", uma "sincronicidade”. Essa é a subjetividade do mundo. No entanto, acho que posso aqui abrir um espaço para dizer como a leitura pode nos convidar a solidão, ou a uma individualidade permanente. Não quero discorrer sobre a “formação do caráter” do leitor, somos o que somos, independente de como ou do que lemos. Somos seres errantes, e cada um vai buscar nos livros aquilo que é de melhor para si, aquilo que lhe ajuda a enxergar com mais nitidez sua própria vocação como ser humano.
 Toda vez que falo deste tema, a leitura, a formação do leitor, sinto-me como se estivesse em órbita, em meio ao espaço sideral, num vão, e em minha volta estivessem dezenas de satélites a rodar, sem um ponto fixo. Mas continuo lendo porque quero a sabedoria, e a minha única razão precípua para continuar lendo, é a sabedoria, encontrar a sabedoria. Mas um dos grandes problemas é saber onde é que se encontra a sabedoria. Como já disse, nos dias de hoje, é intensamente complicada essa questão. As informações correm no rabo de um cometa e nem por isso são tão dignas de garantia, de serem informações válidas. Talvez tenhamos a sorte de encontrar, em alguma trilha da vida, um professor, ou qualquer outra pessoa, que nos oriente e nos indique um caminho seguro. Mas, não se engane, na maioria das vezes, encontramo-nos sós! E aqui, digo da minha própria experiência como leitor, um leitor, para mim, todo leitor se dá por meio do acaso, e por isso, na maioria das vezes, é preciso dar chances ao acaso.
 Ademais, gostaria de finalizar de uma forma bem pessoal. Acredito que uma das grandes “revoluções” que a leitura pode provocar na vida de uma pessoa é a alteridade. Ser capaz de compreender o outro na sua mais nobre plenitude, e é, também, para isso que lemos, para viver inúmeras vidas num só corpo e sair de uma espécie de “lugar-comum”. Virgínia Woolf disse que o melhor conselho a se seguir quando se trata de leituras é não seguir conselho algum, é experimentar com a própria língua a liberdade que é inerente a essa prática. Mas, veja bem, experimentar a liberdade da leitura, não significa ser arrogante, tanto com o acaso quanto com as pessoas. Porque o tempo é curto, e não nos é permitido ler tudo o que há para ser lido. Então seria completamente inútil desperdiçar nossas forças lendo de modo "desavisado", "ou molhando a casa inteira com o intuito de aguar apenas um vaso de rosas".
 Não quero dizer que alcancei sabedoria, mas queria deixar algo bem pessoal nesta nota. Que, na verdade, não é minha, propriamente. É de todos os livros que já li, de todos os escritores que me foram essenciais e que amei e de todos os sábios que encontrei pela vida.