terça-feira, 20 de março de 2012

À Sombra do Cipreste


Hoje somos inimigos, porém inimigos não convencionais. Sabemos muito bem que nos odiamos por meio de uma fúria indizível, assim mesmo como os verdadeiros inimigos se odeiam. Escrevo-te esta carta não para implorar uma reconciliação, mas sim para dizer que sonhei contigo noite passada.
Como já sabes, é habitual minha perseguição por sonhos ininteligíveis e fantasmagóricos. Meu viço pela morte está presente desde o berço. A morte usa-me incessantemente, até o ponto de me forçar a escrever para meu próprio e maior inimigo.
Creio que eu estava a ler algum livro naquela noite fria. Entrou pelo portão principal sem ao menos desencadear um mínimo ruído se quer. Quando dei por mim, senti um gélido ar a correr pela espinha, no entanto, não percebi que a morte já se encontrava em minha sala de estar. Não senti medo, e nem o medo de sentir medo.
Decidi, então, olhar o que estava a ocorrer no cômodo próximo. Assim, notei que estavas sentado na poltrona que foi de meu pai. Repentinamente, disse-me: “estou a te esperar há um tempo, agora é que ouviu os barulhos da porta?” Respondi, “Não, ouvi há um bom tempo, mas resolvi manter guarda, pensei ser um desses cachorros vadios a entrar pela casa a procura de lixo.” Olhava-me com um olhar ardente, uma negra felicidade rondava teu semblante, algo estava a acontecer dentro daquela casa, era um prelúdio para a morte.
Quando então decidi oferecer algo para beber, disse-me: “siga-me, precisamos resolver nosso antigo caso, meu ódio por ti e por tuas infâmias ainda não se aquietaram em meu coração. Morro a cada dia pensando no que foi nossa amizade e por aquilo que a desnutriu e a enfraqueceu até seu último suspiro.” Pensei nessas últimas palavras com muita condescendência, e sem pestanejar ou a me exaltar, disse: “Não, quem foi o pai da mentira, que nossa amizade enterrou? Não podes pôr a culpa em mim. Um sujeito sabe que tem um amigo até o dia em que há um desacordo. Se não somos capazes de superar as desavenças, acaba-se! Mas, o que é a vida, senão uma sistemática sucessão de desentendimentos?”
“Chega!”, disse-me, “não tente mais embromar com tais argumentos, tua hora chegou.” Não respondi, e nem mesmo revidei, aceitei meu destino, pois com o acaso não se pode brigar. “Escolha algo para levar junto a ti, qualquer objeto ou coisa.” Neste instante notei que as paredes se abriam para um vão negro, e as prateleiras pululavam por meio de um tremor proveniente dos móveis. Uma dúvida infatigável corria-me às artérias, o sangue, quente como a lava de um vulcão, já estava a queimar as vísceras. Pensei na Bíblia, mas senti que a infâmia do momento não merecia a escolha de tal livro. Assim, passei as pontas dos dedos por entre a primeira prateleira que avistei, e me saiu uma edição da coletânea de diálogos de Jorge Luis Borges.
“Pronto”, disse eu. “Podemos ir”. Entramos pela pequena rua que confluía com minha casa, pensei que fôssemos em direção ao pequeno córrego, mas seguimos adiante. Uma velha e cansada carruagem nos esperava. Adentramos, e percebi que o cocheiro sabia de tudo, senti em seus olhos uma espécie de piedade ou gratidão. Tentei desviar o olhar daquele sujeito, concluí que eu não merecia tamanha misericórdia, nem divina, nem humana. Passados trinta minutos de lentidão, chegamos a um lugar de aspecto extremamente bucólico. Enfim, “a sombra do cipreste pôde abraçar o cipreste”. Paramos por debaixo de uma lustrosa árvore. Os raios da lua, ou os falsos raios da lua, refletiam sobre as folhas uma luz clara e ao mesmo tempo espoliante, escondendo outro detalhe que agora me é roubado pelo despertar. Em cada folha se escondia um rosto. Neste instante percebi o quanto os efeitos do tempo haviam roubado aquela suntuosa altivez dos teus olhos. Dos tempos em que éramos confidentes, nada restou daquela misteriosa vontade de ser alegre.
Agarrei-me ao pequeno livro que levava às mãos, e dei conta que, no exato instante, encontrava-me descalço. A saída de minha casa foi tão repentina e com ares de desapego, que me esqueci de vestir os pés. Senti, em minhas narinas, uma ácida e úmida bruma. Meus pés, molhados pelo orvalho da grama, sentiam o mesmo frio que minhas costas ao contato com o aço.

Agora, olhando ao redor desse pesadelo, reflito sobre minha angústia em cair no abismo do sono novamente. Ao acordar, percebi que estava em falta na minha estante o primeiro volume da coleção de diálogos do Borges. Sei, e isso não me é assustador, que tu e meu livro, presos em meu pesadelo, seguirão por entre as ruas que não se vêem, a falsa luz da lua e o cipreste com seus monstruosos galhos, descobrindo o horror de um grande esforço que jamais poderá nos salvar.

sexta-feira, 9 de março de 2012

A morte para leigos

[Forma de expurgar o vazio da morte, escrevendo]

Nunca me inclinaria a escrever sobre a morte. A morte é algo que está para além do meu entendimento. Mas, como toda experiência de vida, podemos tirar algum aprendizado, mesmo que nada seja dado de absoluto. Aqui estou. Seis anos depois de sua partida. Dedico-te esta carta não por mero capricho, para dizer que: estou aqui, olha bem, sei escrever. Não. Nem sei escrever, e nem sei ao certo o que estou a escrever. Procuro escrever para tentar entender, e também porque não há nada de mais interessante para se fazer neste momento.

Bom, procuro, com estas pobres palavras, dizer o que representa a morte para minha pessoa. Esta falsa aparência que nos costuma ser a morte, nada mais é que uma ladra. Eu sei, sei, que rogar pelo aniquilamento da morte é rogar para uma vida eterna e pela imortalidade, o que, também, eu não suportaria. Pelas voltas que o mundo anda a dar, não vale a pena ser imortal. Mas, em verdade, gostaria que a morte fosse menos abusiva ou menos indecente. Como pode uma força, um raio de uma força metafísica nos roubar uma pessoa, assim, do nada? Sinceramente, esperava mais da natureza, se, como dizem, fosse tão perfeita como se apresenta, deveria nos dar uma explicação mais plausível para o fenômeno da morte. Muitos, e acredito serem menos numerosos do que tolos, tentam desvendar, mas, sem dúvidas, não conseguirão, porque a morte brinca-vos à cara!

Outro grande absurdo da morte é a mania iconoclasta do ser humano em sepultar corpos já sem sentidos próprios, e em mantê-los em pequenos castelos de tijolos e areia. Quer algo de mais horroroso que um cemitério? Não seria muito mais asséptico se todos fôssemos reduzidos à cinzas quando morrêssemos? Quanto trabalho pouparíamos a natureza. Bem, pensando, os vermes e baratas e minhocas necessitam de alimento, mas, acredito que deve haver outras formas melhores de se alimentar senão com carne humana. Acabaríamos de vez com todo esse espetáculo que é um velório e um sepultamento. É, nada mais, uma forma de prolongar todo o sofrimento de quem resta em vida. Bom para os “convidados”, porque, duvido, para os familiares do morto não há nenhuma forma de prazer! Mas esta é uma das grandes formas do ser humano se mostrar hipócrita e inútil. Não há melhor forma de ser conhecido e ter fama do que sendo um morto! Ninguém tem inveja de um morto, porque ninguém quer ser um morto. Por isso, fulano vira santo, depois que morre, fulano era tão simpático, depois que morre, fulano era uma pessoa excepcional, depois que morre. Quanta repugnância! Não conheço todos os mortos do mundo, e por isso não posso afirmar se todos foram santos, e nem, por outro lado, que também não foram.

Eu fiz o que pude para tentar esquecer sua breve presença neste mundo. Mas você foi como a varíola, tive quando criança e nunca mais consegui me livrar das pequenas chagas. As vezes, para tentar amenizar todo o buraco que se abriu na minha vida, penso que você está longe, num longo período de férias e descanso, é o que todos procuram pensar nos primeiros dias. A idéia de sempre ter-te visto com uma vassoura pelas mãos, a deslizar pelos cômodos da casa, reforça esta minha idéia de repouso. Trabalhas-te por demais em vida, merece, de certa forma, descanso.
Quanto a mim, penso que morrerei de repente, num rompante. Talvez, quando descobrirem esta nota, posso morrer, ou, até mesmo, antes de a descobrirem. E muitos dirão, nossa, viu? Foi brincar com a morte e acabou dando no que deu! Bando de inúteis! Outra grande e prodigiosa façanha da morte: provocar um rebuliço lingüístico por entre as pessoas. Principalmente se o motivo da morte não ficar claro. Aí, será um alvo facílimo para especulações. De que importa? Morreu, pronto e acabou! Ninguém precisa saber o motivo, claro, a não ser naquelas situações onde a morte se deu por via de um assassínio, mas isto pertence só às autoridades e família do dito cujo, não necessita ser foco de investigação popular. Vai, bando de abutres, cuidar de suas próprias mortes! Morrer deveria ser libertação. Mas, no que vejo, está mais para uma prisão, onde a imagem da pessoa morta, fica, ora por motivo de adulação, ora por motivos de ódio e ranços. E só para não dizer que falei pouco de mim, digo que sofri e sofro até os dias de hoje, e continuarei sofrendo pelos dias que me restarem. Muitos dizem que mal a enterrei e já estou completamente recuperado, por mais estranha que possa me parecer esta palavra, recuperação. O silencio é o ato mais incompreendido de todo o mundo. E aí está, outra grande força que a morte exerce sobre nós, o silêncio. E por isso que o luto está interligado ao silêncio. Não há palavra após a morte, não há até se aperceber que a vida continua acontecendo. Foi a única lição tirada por mim em todo este episódio. A vida do homem está traçada em linha reta, quando esta linha acaba, acaba e ponto. O que está por fora de nós, a natureza, as plantas, as estações, o universo, são um conjunto de vivências cíclicas, que se renovam e se reinventam a cada período. Por isso, nos é caro tal entendimento. Para nós, é uma vez para nunca mais!
Chega! Já estou a me repetir por demais. Eu queria escrever algo muito diferente do que escrevi, mas agora não quero voltar atrás e apagar tudo e reescrever. Por fim, ainda estou a espera que a humanidade ou, por milagre, alguém possa decifrar esta ordem que está posta dentro de todo o caos de nossas vidas, que chamamos de morte.