quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Um sonho vão



O sonho durou cerca de vinte minutos, ou trinta, ou todo um instante de uma vida, não sei. É algo que envolve a existência de Deus.  Se, supostamente, existe, Ele sabe quanto tempo durou meu sonho; se não, ficará essa ulterior porção de imagens a pernoitar por todos os outros sonhos que terei. Fato que não é passível de entendimento e veracidade.
É simples e fatigante. As coisas existem uma única vez, mas num sonho é diferente. Deplorável é minha condição de sonhador, que não sabe, senão outra coisa, sonhar comigo mesmo e variações de minha própria imagem. Meus sonhos são assim, revelam-me coisas passadas e aterradas pelo tempo. Nunca pensei nada de original na vida, sou um simples imitador da realidade, multiplico sonhos por meio de imagens que me são dadas pela configuração do real. Sou uma espécie de ampulheta manipulada pela noite, assim como a sorte e o revés pelas mãos do acaso.
Ocorreu que num dia sem sol e nem sombras, encontrei-me sentado num dos bancos da Praça de Maio. Sentia uma sensação plena de serenidade, talvez estivesse morrendo. Observei ao meu lado a presença de uma intrigante moça. Tudo se passava de forma natural, como se estivéssemos no outono. O clima agradável contribuía para meu elementar medo do impossível.
Olhei mais um pouco, e na outra ponta vi pessoas gesticulando de formas incompreensíveis. Senti que não sabia o que se passava, ou o que estava eu a fazer sentado na praça? Sendo que nunca, ou quase nunca, saio de casa. Quanto à moça, lembro-me ter lançado sobre mim um impetuoso olhar, e de forma perturbadora disse que estava a me achar muito simpático, que meus olhos transpiravam tranqüilidade. Apesar de tudo ter ocorrido rapidamente, penso que minhas olheiras se intensificam com o tempo, posso crer que meus olhos servem de depósito para coisas. Tenho o infatigável costume de transpor os olhos para as coisas, e as coisas para os olhos.
A moça, terna e simpática, soube que naquele instante via em mim um pai, um protetor. Por eu não ter tido filhos, notei que aquela moça era algo de mim, uma parte, uma brutal extensão de minhas carnes.
Acusam-me de misantropia, ou talvez de prepotência, mas é certo que não me sinto um sujeito isolado. Meus difamadores, que não são menos estúpidos que numerosos, dizem que nunca pisei na rua, que tenho aversão à plebe. Fato que não me impedirá de incorrer no agonizante ditirambo dos sonhos.  No instante, sentia que não era pouco, que eu estava em consonância com toda a irmandade cósmica, senti-me um grande irmão do universo. De todos os costumes fúnebres, de todos os carteiros, de todos os moradores de casas com números pares, de todas as pessoas que não sabem o que sabem e que sabem o que não sabem, de tudo o que possa existir no mundo, como, por exemplo, o singular cérebro de uma formiga. Senti-me, em resumo, único. Todos os demais pontos do universo transportavam-se a mim, e depois convergiam na presença da moça.
Após um tempo, inconcebível para minha razão, a moça me beijou no rosto. Suponho (e esta é a única palavra que me é dada por direito neste instante) isto foi a prova que eu não estava sonhando. Sua presença já havia durado demais para ser apenas um sonho. Despertou-me, ao mesmo tempo, uma insaciável solidão, e lembrei-me de como eu, nas tardes de sábado, no solitário saguão da academia, estudava latim arcaico. Sei que meio período de sonho não se passa em vão. Entendi, também, que não podíamos nos entender, a moça e eu, ou que nos entendíamos pelo senso do beijo, ou éramos incompreensíveis um para o outro da mesma forma distante como se apresenta o amor, sempre tão impassível de se compreender como os compêndios de meu avô, onde encontrávamos assuntos tão singulares como os costumes sexuais dos povos balcânicos.
 A situação, ao contrário do que eu previa, não durou muito, pois era absurda por demais. Inútil de minha parte lutar contra uma fantasia e discutir meu inevitável destino. Pois a máquina do universo é simples demais para a complexidade de um sonho.
A moça, como todos, afastou-se. Não mais a vi.
Acordei em meio a um cheiro de mofo. Coloquei um chá no fogo, e comecei a lembrar do que havia se passado no sonho, de como a moça se despediu sem ao menos perceber que minha vida é um gradual desenrolar de peças trágicas. Como um lento derreter de velas, sofro, agora, pela vontade de não sonhar.  Não fui outro depois desse sonho, como tantos outros. Meditei sobre a moça, suas feições ciganas, sua pele mascavo. Batia-me à cabeça uma voz lenta e fraca, e dizia-me que tudo não passava de criação da magia e ordenava-me transformar tudo em pó. Creio que o encontro, ou nosso casual encontro, foi inevitável. Ela me sonhou e eu a sonhei. Sonhamo-nos mutuamente, como assim é, e como assim somos. E, ao fim de tanto conjecturar, recebi um telefonema, de uma voz sem nome, dizendo que eu havia perdido minhas chaves no saguão da academia.