domingo, 30 de janeiro de 2011

Coisas da Terra

A inigualável e habilidosa prática dos japoneses com as técnicas de manejo do bonsai, não é mito; é um hobby, extremamente exótico, e motivo de orgulho para esta notável nação, pois, exultante, presencia esta ínfima arvorezinha florescer em meio a cubículos desenhados pela modernidade. Por aqui, também existe uma milenar tradição em se cultivar uma certa espécie de vegetal lenhoso. Por conseguinte, acredito, que este atentado costume não seja motivo de orgulho e, quem sabe, um dia, possa vir a se tornar um mito? A técnica da qual falo é a arte de assentar mangferas. Sim, mangueiras, pé de manga. Essas árvores se alastram feito pragas por todos os cantos. Como se já não bastasse o trabalho do qual a natureza se encarrega de realizar por si só, enviando gralhas de maritacas a espirrar tocos de sementes por onde quer que sobrevoem, os famigerados moradores insistem em preservar, cautelosamente, a cultura dessa gigantesca e dorsal árvore.

Para se ter uma noção do tamanho da infestação causada por esta insidiosa prática, outro dia, uma dessas que mais parecem um mamute pré-histórico com seus galhos a atravancarem o vazio, despedaçou-se, e, abruptamente, foi pousar sobre as ondulosas telhas de Dona Feliciana. O pululante nome desta estimada anciã, do qual cunharam-na perante a civilidade, revela a sua denotada e benevolente condição de vida, no entanto, apesar das agruras da vida – como por exemplo, a queda de um anormal e extensivo galho sobre o teto de sua residência, nunca exitou em nos mostrar os pequeninos grãos sintéticos fixados na boca. Pobre. Um aterrador e estrondoso grunhido apeteceu-me justamente na hora das iguarias do meio-dia. Quando voltei a mim, o ancho galho já havia destroçado toda a barraca de telha. Sorte de Dona Feliciana, que não se encontrava no recinto na exata e infortunada hora do esquartejamento.

No fim, acho que toda a sorte foi é minha, isso sim! Por estar dividindo um muro de concreto com a felicidade propriamente dita. Pensei, isso deve funcionar como um amuleto defensor, impedindo que um precipitado chifre de árvore, obsessivamente, se perca no simétrico conjunto de telhas protetoras de minha cabeça.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

A Trama

Para que seu horror seja perfeito, César, acossado ao pé de uma estátua pelos impacientes punhais de seus amigos, descobre entre os rostos e os aços o de Marco Júnio Bruto, seu protegido, talvez seu filho, e já não se defende, exclamando: "Até tu, meu filho!". Shakespeare e Quevedo recolhem o patético grito.

Ao destino agradam as repetições, as variantes, as simetrias; dezenove séculos depois, no sul da província de Buenos Aires, um gaúcho é agredido por outros gaúchos e, ao cair, reconhece um afilhado seu e lhe diz com mansa reprovação e lenta surpresa (estas palavras devem ser ouvidas, não lidas): "Pero, che!". Matam-no e ele não sabe que morre para que se repita uma cena.

(Jorge Luis Borges)
Obras completas de Jorge Luis Borges, volume 2 / Jorge Luis Borges. - São Paulo : Globo, 2000.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

No Olho da Rua

Ir à rua, na concepção imagética de movimento para quem reside em cidades interioranas, não é sinônimo de ir a qualquer lugar. Passear sobre as calçadas salientes da minha cidade traz-me uma sensação de liberdade, porém se não fosse esta minha indecisa compreensão do mundo, em achar que tudo e todos estão a observar-me, poderia andar mais livremente. Mas, no entanto, isso não anula o brio ofertado por estas vias.
Quando penso que necessito de algo, seja lá o que for, mas necessito, a primeira coisa que me vem à mente é: ir à rua. Ir ao mercado, ir à farmácia, ir ao açougue, ir à loja, enfim, todas essas “idas” se resumem em uma só: ir à rua, novamente.
Prefiro sempre enveredar caminhando. Sinto o choque sonoro dos veículos em meus ouvidos; sinto o cheio do estrume fresco de um cavalo trotando com uma incômoda carroça nas costas; vejo a senilidade cruzando a faixa de pedestres tranquilamente, como se já não tivesse piedade dos motoristas que aguardam furiosamente sob um sol de cintilantes faíscas. E tudo passa. Pessoas conversam no meio da calçada – e parecem que escolhem justamente o lugar em que nossos pés cismam transitar, peço licença, somente.
Meu mapa mental já está todo cravado de tachinhas, e já sei precisamente onde devo ir desde que saio de casa. Corro pelas lojas, mesmo não comprando. Me dá prazer em ver coisas novas, cheiro de novo funciona como naftalina para as minhas narinas, tira todo o mofo que está acumulado. Passo pelo super mercado, e deparo-me com a calçada abarrotada de mastodônticas caixas guardiãs de ração humana, fico impressionado, e suponho que estou a transitar por um labirinto, mas logo encontro a entrada, e a moça das sacolas recebe-me com um singelo sorriso. Já digo de passagem, que nem tudo na rua são flores. Há de se encontrar, às vezes, atendentes mau-humorados. Nessas horas, nada melhor do que uma arma letal e infalível, o faro da predileção do consumidor.
De tudo o que tenho a fazer na rua, o lugar que mais me agrada e o qual me sinto confortavelmente numa colméia, são as bancas de jornal. Elas, em muitas das situações, são imperceptíveis a olho nu, permanecem esmilinguidas, frágeis, cabisbaixas na beira de uma esquina qualquer. Ninguém as desbrava, a maioria da população só se recorda de sua existência para a compra de Jornal, e só. Mesmo assim, já percebo muitos estabelecimentos a usurparem a verdadeira essência das Bancas, pois vejo jornais serem vendidos em padarias, lanchonetes, bares e restaurantes, um bando de maquiavélicos sem coração.
Certo dia, isso já é de praxe, pois toda vez que sigo à rua devo parar e ver a banca, mesmo sem a intenção de adquirir nadica, mas com a complacência de saber sobre os seus dias, como ela tem passado, quem a visita, o que tem recebido de novo, etc, etc e etc. Adentrei, salteando sobre maciças tábuas de madeira a forrar todo o seu piso. Deliberadamente, como de costume, cumprimentei o Senhor Elisário. A partir daí comecei a revirar o doce mel atracado nas prateleiras - saboreio sobriamente, e consigo passar horas e esquecer a vida. Repentinamente, vejo, dentre revistas de tricô, puericultura, automóveis e infinitas convicções religiosas, um exemplar surrado de pó exalado pelo leito da via, de Outras Inquisições de J. L. Borges. Não acreditei, como poderia? Um mito. Indecentemente, com todo respeito ao Senhor Elisário, arranquei o livro daquele pequeno mausoléu, limpei-o com as bordas de minha camisa, e reluzente, radiante expus, na prateleira que dava fronte ao meio fio, aquela obra quase dissecada por sorrateiras e invejosas edições.
Saindo de lá, tive a jubilosa sensação de apreciar um bem, um bem que eu estava a proporcionar, mesmo tal gesto, aos olhos de meus compatriotas, parecer uma tremenda bobagem – em dedicar um momento de felicidade a um portenho. Pensei, vez ou outra, a humanidade necessita regrar-se com água potável.
Assim, segui em direção a minha casa, após vaguear divertidamente pelo olho da rua.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Um Suicídio Voluntário

Pois bem, já fiz tudo o que havia de ser feito. Casa limpa, roupas no varal, porcos com a barriga cheia. Agora, acredito, posso morrer em paz. Tomei decisão. Muito bem tomada, por sinal. Uma atitude insólita, para um ser insólito. Em curtas palavras, me explicarei.
Certa vez, uma pródiga senhorinha discorreu: “- Quero um suicida que se explique!”. Então, após infindável objeção, creio que a danada encontrou tal retardatário. Aqui estou a explicar-me.

Deram-me uma vida e, consequentemente, faço dela o que bem quero. Já sei, já sei! Vejo sinuosas pontas de osso a expirarem discrepantes acusações em direção a meu faro. Só que, sendo a vida minha, as crenças, e tudo mais a que ela pertence também hão de ser minhas.
Cansei-me de viver. Fantasiando sempre, nunca tive um momento de felicidade propriamente dita. Salvo raras as vezes que sobrevieram mascaradas, e me fizeram acreditar que o era. Posso até afirmar, com intrujadas palavras, que obtive em meu paladar um gostinho suave, suave de felicidade. Mas nada de se encher os olhos, ou melhor, a boca.
Família, que se foi gradualmente. Primeiro os pais, e em seguida irmãos. Vi todos passarem por entre o beco estreito de uma ampulheta, feito grãos de areia que escorrem pela resvalada vidraça da vida.
Amigos? Os que me “consideram” fingem ser agradáveis, mas no fundo no fundo, são esnobes em potencial. Lixam-se pra mim. A única amizade sincera e gentil da qual deixo com o coração em trapos é a dos porcos. Os porcos não possuem um mínimo de vergonha, e nem escondem toda a sujeirada que carregam sobre o couro. Demonstram-na sem pudor.
Amor? Amor de amar, de casar, namorar, juntar? Vichi! Esse, larguei de mão há tempos! E deve ser uma das coisas mais insalubres que me fazem, neste momento, estripar a vida. De desgosto por desgosto, prefiro permanecer no contragosto. O contragosto é um sentimento de nunca ter experimento nada, nem mesmo o amor.
Na verdade, pensando muito bem, nem sei o porquê de está a escrever isto. Talvez seja por consideração a senhorinha, por achar que fazendo esta nobre reminiscência, posso excretar tamanha dúvida e desespero que a faz sair por aí feito um grilo da noite a gritar pros quatro ventos: “- Quero saber se morreu de amor, de decepção ou xilique.”.
Bem, no meu caso, analisando a situação, concluo que seja de duas causas.
Amor, que só conheci através dos porcos, mas, mesmo assim, não estava acompanhado de uma sinopse. E fique já esclarecido que não mais este impertinente vocábulo deslizará sobre esta carta. Amor? Te dana!
Decepção, por tudo aquilo que não provei, ou seja, aquilo que não me deram oportunidade – e não me deram mesmo, pois fiz de tudo pra provar. Sempre me sentindo feito uma criança com as babas a escorrer por entre os lábios, os dentes, frenéticos, com um viço para morder seja lá o quê. Por isso, só apreciei o contragosto, e só.
Xilique, dizem que é algo parecido ou idêntico ao faniquito. Eu nunca tive essas frescuras. Se pensas que morro por xilique, estás a se enganar, pois a estabilidade desta terra me proporcionou uma vida bucólica e sem interferência do homem, fazendo-me uma espécie de árvore. Não dependo de nenhum ser que carregue sobre o corpo, carne. Só morre de xilique quem depende de outro homem pra suprimir necessidades. Os homens são como covas cavadas para serem, num determinado momento, jazigos de outros homens. Acabo por crer que o mundo é um cemitério vivo. Todo mundo carrega em si um defunto, um cadáver, mesmo que não perceba toda a putrefação que, aos poucos, nos remetem à condição humana.
E nesta confusão a qual me encontro, um misto de sentimentos reprimidos, ainda resta-me decidir como me matarei. Não encontro outra alternativa a não ser o envenenamento. Uma morte lenta e gradual, assim mesmo como vim ao mundo. Lentamente, foi desenvolvendo-me no leito do ventre de minha mãe, e, ao tardar de um dia, fui espirrado no mundo, sem mais nem menos. Nem se quer me deram satisfação por tal fato!

Por fim, deixo aqui as minhas considerações a respeito desta carta de destituição. Carta de uma vida que nunca mais será a mesma, ou melhor, nunca mais regressará ao voluntário matadouro de homens.

domingo, 23 de janeiro de 2011

Grafando



Escrevo. Escrevo que escrevo. Mentalmente me vejo escrever que escrevo e também posso me ver escrevendo. Lembro de mim já escrevendo e tambem me vendo escrever. E me vejo lembrando que escrevia e escrevo me vendo escrever que me lembro de ter me visto escrever que me via escrevendo que lembrava de ter me visto escrever que escrevia e que escrevo que escrevia. Também posso me imaginar escrevendo que já havia escrito que me imaginaria escrevendo que havia escrito que imaginava a mim escrevendo que me vejo escrever que escrevo.

SALVADOR ELIZONDO, O grafógrafo.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Ode à Escada

Escada
Espectro, protuberante incisão
Forma de vida estreita e pontiaguda
Escadas, de duplos terrenos
Ambiciosas, rudimentares e incoerentes
Segam passos, deslizantes, ventam sobre teu ventre.

Curtos rodapés, contínuos
Permissivas escalas
lançadoras de movimentos intermináveis
Animada sinestesia de impulsos
impulsionando calorosos instantes.
Sincronia de passos
Passos largos, curtos e modulares
Abalo do calcanhar
Ambição do andar
Doces subidas e descidas;
frenéticas, lançam espasmos a distância.

Ignorante modo de vida
Espelhos horizontais
Lâminas
Saliencias Dolorosas
Maçantes sinuosidades;
destemidas e perigosas.
Corriqueira borda
Defesa pessoal
Desenho seguro e preciso
Obstinada estaca lateral
Obscuras.
Cicatriz arquitetônica
cabo do início, amostra do fim
Chafariz da inocência, abrigo das diretrizes
Quente, larga
Fria, acanhada.

Sempre seguindo em frente
sempre refluindo a trás
Assento maioral das nádegas
Itinerário da pequenez
Será escada.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Letargia

Certa vez, após aguardar intermináveis horas golpeando a madrugada, consegui engarrafar o meu sono. Hum... Danado! Era tão maleável que obtive uma tremenda sensação de estar perseguindo um pedaço de seda. Foi a primeira vez que vi o sono propriamente dito. Nunca tamanha proeza esteve tão próxima de meus afamados olhos. Perfeito, uniforme, tranquilo, assim mesmo como ele nos parece ser.
Permanecendo assim, batizado por tamanho êxtase onírico, eu, na escuridão em que banhava meu quartinho, era interminavelmente iluminado pelo sono. Um cristal fosco, mas ao mesmo tempo, parecia-me uma rachadura no céu a roubar uns instantes de raios solares do oriente. Não há arsenal discursivo o suficiente para descrevê-lo, foi a coisa mais próxima do núcleo terrestre que pude imaginar.

O meu semblante nunca escondeu de ninguém esta minha ficção pelo sono. Estive há anos, incansavelmente, buscando artifícios para que este dia chegasse. Mas eu consegui, parecia que as horas me obedeciam. Eu tinha o sono em minhas mãos, eu tinha o poder de segregar as pessoas, quando e onde quisesse. Mas era óbvio que não faria isso, pois sabia que estava a lidar com algo, aparentemente, a meu ver, traiçoeiro.
A garrafa, a qual aportava o sono, era uma dessas de condimentos que adquirimos em qualquer mercearia. Era de Canela.
A canela, instintivamente, sonha em ser o odor da paixão. Creio que ainda não conseguimos classificá-la como o perfume da atração afetiva. Canela significa a condição de ser e estar apaixonado.
Por tudo, a madrugada se esvaía, e eu permanecia incinerado pelo poder sonífero da canela. Mas, em certo momento, não mais consegui identificar quem era quem. Quem era a canela? Quem era o sono? Havia uma mistura homogênea irreconhecível dentro da garrafa. Mesmo com esse sentimento dúbio a circular em meu líquido existencial, continuava a contemplar o sono e também os resquícios da canela atracada ao corpo da garrafa. Ah, a canela, era em pó!
A canela. A garrafa. Ambas se tornaram naquele momento, o atributo que concedia habitat ao paradoxo eterno.
Em certo instante, notei que o sono se tornava triste, não era mais aquele sono estonteante que nos faz cair a seus pés. E num repentino despertar, acreditei que tamanha melancolia, fosse, por fato, a ausência de um dos pilares de seu letárgico jazido realístico. O sonho. Como pude me esquecer do sonho? O sonho que é a razão do sono. Todo mundo sonha. Sonho sonhar com o sonho.
Inutilmente, tentei travar diálogo com o sono. Ligeiramente, o indaguei:
- Como pode sono, privar-se do sonho?
No exato momento, nada se ouvia do sono, nada se ouvia a não ser um desmedido silêncio. Insisti muitas vezes. Eis, assustadoramente, que o sono se abre, e inclinado-se o vi transfigurado numa espécie de esperança da noite, trovando a resposta:
- Não penses que privo-me, privam-me!
Não merecendo nenhuma gota daquela formosa madrugada, abaixei a cabeça e não mais quis proferir um resquício se quer de palavras. Acreditei que estava a cometer um suicídio, em arrancar do sono o teu sangue, a tua carne, a tua formosura e gentileza. Já com a alma embrulhada pela vergonha, não exitei, libertei o sono. Desenrosquei minuciosamente a tampa da garrafa, e o ar se incendiou do mais chamuscado odor da canela. O sono, rapidamente, se infiltrou na atmosfera, fazendo-me tragar o teu cheiro lavrado pelo cansaço borrifado em meu rosto. Eu senti minhas olheiras se aprofundarem ainda mais, como se estivessem escavando em meus olhos a minha própria cova.

E não mais persegui o sono. O sono é impersseguível, não se pode aprisioná-lo, assim como fiz. Eu mesmo, um completo tolo, tive a desonestidade em dissecar de mim mesmo a sutileza do sonhar. Como viveria sem o sonhar? Sonhar é preciso. Sonhar alivia. Sonhar é o fim.

domingo, 16 de janeiro de 2011

No Topo do Mundo



Uma tremenda sensação tomou conta de mim
Há um deslumbre em quase tudo que eu vejo
Nenhuma nuvem no céu
Tenho o sol nos meus olhos
Eu não ficarei surpresa se tudo isso fosse um sonho

Tudo que eu queria que o mundo fosse
Está virando realidade para mim
E o motivo está claro
É porque você está aqui
Você é a coisa mais próxima do paraíso que eu já vi

Eu estou no topo do mundo vendo toda a criação lá
Embaixo
E a única explicação que eu acho
É que o amor que eu encontrei desde que você chegou
Me colocou no topo do mundo

As vezes acho que você aprendeu meu nome
E isso me diz que as coisas não são mais as mesmas
E caminhar entre as arvores com o toque do vento
Tem uma sensação gentil de felicidade para mim

Há somente um desejo em minha cabeça
Quando este dia tiver terminado eu espero descobrir
Que amanhã será do mesmo jeito para você e eu
E tudo que eu preciso será meu se você estiver aqui

(Top Of The World - The Carpenters)
Imagem: Google Imagens

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Dente

Cai o dente.
Pobre dente.
Dente, em ti havia um copo de leite quente.
O dente é primo do pente, pois ambos fazem a higiene da gente.
Pobre dente.
Dente intermitente.
Dente que um dia se descarrilhou e se chocou com a úvula.
Quase engoliram o dente.
Esse dente era pertinente!
Não vejo o dente.
Quem vê o dente é contente.
Sou triste.
Sou mole.
Assente dente.
O dente é crente. Crente e sente. Se sente é porque mente.
Nunca sei do dente.
Quem sabe do dente é vidente.
O dente é insipiente, não gosta de falar carinhosamente.
Tudo pro dente é freneticamente ardente.
Dente que, perdidamente carente, está decadente.
O dente, diplomaticamente, é diferente.
Dente, excelente dente!
Lustroso dente que indecentemente é mormente.
O dente vai doente, doente pelo batente.
O dente procura deficientemente um depoente.
Façamos do dente um florescente acidente!
Dente, heroicamente inocente!
Agora, vejo o dente.
Dente saliente, imponente, está integralmente paciente.
Nervosamente o dente se sente como uma estrela cadente.
Estrela vivente!!
O dente é uma estrela que nasceu totalmente sorridente.
E assim, docemente residente, o dente vai diligente se fazendo de convincente.
Eu acredito no dente.
Dente pra mim é coisa de gente.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Falando nisso...

Falo. De tudo o que a medula da vida me traz, a coisa mais insipiente é o falar.
Falo novamente.
Minha avó diz: -Sempre fale na hora certa, menino! -Quem muito fala dá bom dia a cavalo! Bom, então vivo pelo alvorecer rendendo saldosos cortejos a todo equino que trota pelas vias.
Por isso, acabo em acreditar que é coisa de família toda esta falácia. Pois o meu pai sempre diz a minha mãe: -A mim, nesta casa, pertence a fala e o falo! Ingênuo, penso: ele está a falar duplicadamente. Isso de falar acaba causando, em certas ocasiões, provações espontâneas.
Por mais, falo, ou melhor, tento. Tento falar pra fora, mas, por mais que arrisco, não consigo. No fim, não sei, talvez seja o efeito volátil da vida, acabo pondo tudo além, instintivamente. Porque tudo o que falo, propriamente dito, se transporta pra dentro. E como só consigo dizer coisas inexplicáveis, ininteligíveis, ruidosas demais e desconexas, meu âmago interior e minha língua acabam a botar tudo pra fora, num espontâneo vômito de falas.
Há muito, dizem-me que não falo, só grito. Mas em que consiste o grito? Apenas num sopro mais elevado da garganta. E como tudo na vida necessita de um grito pra existir, eu também, como ser andejante, possuo força bruta e dou meu grito.
E no entrelaçar de falas em que consiste o mundo, não consigo parar de falar. Construo longos monólogos comigo mesmo. Procuro falar o necessário, por mais doloroso que isso me pareça.
Não sou como determinadas pessoas que, ancoradas em alguma esquina errante, ficam a mercê de certos ditos. Não sou de dito. Ditos, pra mim, são coisas ultrapassadas. E, na medida do possível, busco viver coisas novas e presentes. Porque todo mundo sabe que o presente é uma coisa que está presente, e não há como substituí-lo. Nem mesmo com ditos.
Oh, acabo por me dar conta que quanto mais falo, mais a minha garganta seca. As veias, trêmulas, se racham num danado frenesi . Penso em querer tirar proveito desse parlatório todo, mas não posso. Pois falar é um prazer, e prazer não pode ser tirado proveito, por mais que gostemos. Prazer é prazer. Ademais, ensaio em parar de falar, ou melhor, não a fala que sai como um assopro da boca.
E por falar, de onde vem a fala? Não sei. Procuro até hoje.
Dizem que é coisa da glote, mas a glote é algo que tapa e não que libera. Outros já disseram que a fala é coisa da alma auxiliada pelo espírito. Então, chego a conclusão de que: a minha alma é uma vitrola velha, e meu espírito um gramofone, e, ajustados, seguem a tocar os "LPs" que a vida põe.
E por fim, pra terminar esta conversa agradabilíssima que estou travando com tu, mesmo não ouvindo se quer a tua fala, dizem-me que os outros falam muitas coisas. Principalmente a meu respeito. Oras, mas o que tendem a falar de mim? Nada. Absolutamente, nada! Não sou interessante e nem sequer possuo papo.
Apenas estou aqui, como um louva-deus a engalfinhar os meus dedos nas teclas do falar.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

O que pode uma Câmara Fotográfica?

Um momento, passou...
Em um instante tudo se revela. Nada é para sempre.
Mas ela estará, a qualquer tempo, disposta a ser: "A Sentinela".
Uma câmara, como já dizia o poeta, nada pode por si só.
Sendo um simples objeto inanimado, só pode com a ajuda do fotógrafo, o dissimulado.
Esse sim pode, cabal, estará sempre por detrás de uma câmara a captar o mais tarrível e profundo abismal.
A câmara fotográfica é tão original que não possui nem um inventor.
É fruto de várias experiências do tempo amador.
Dispara-se um flash e o tiro está dado.
Pelas mãos de um hábil operador, a câmara faz coisas que até paracem um filme de terror.
Onde a emoção e delírio estão quentes, gerando assim, um clima de suspense.
Vigiar, dependendo da situação, pode até gerar uma termenda confusão.
Com direito ao confisco da pobrezinha, que nada fez a não ser obedecer ao um piscar de uma luzinha.
Denunciar, com grandes habilidades investigativas.
Ela pode até aparecer em um noticiário da TV.
Guardar, aquilo que está decadente e ninguém quer olhar.
Porém, sempre se acha um lugar para trancafiar.
E segue seu caminho a esconder aquilo que, aos poucos, está se desintegrando.
E mesmo assim, todos estão se lixando.
O foco central de uma câmara, sempre será o foco central de seu usuário, que necessariamente, não será sempre o fotógrafo, mas qualquer indivíduo que esteja apto a não perder o foco.
Em mãos inquietantes, a aptidão de uma câmara é rodar como um caixeiro viajante.
E ao findar, de par em par, seu usuário estará sempre a utilizar a mais bela sincronia dos movimentos de um dia.
(Inspirado em: Câmara Viajante - Carlos Drummond de Andrade)

sábado, 1 de janeiro de 2011

Lavrar

Por que escrevo?

Talvez pra mim, ou satisfazer esta ânsia inaudita que me sussurra dentro.

Já pensei em escrever tudo aquilo que não tenho coragem de dizer - o que é propriamente dito. Como é difícil.

Penso em escrever para o próximo, mas o próximo, por mais próximo, ainda se encontra distante demais de minhas mãos escritoras. Essas minhas mãos! Tão audaciosas, não param de se movimentar, frenéticas, não possuem um mínimo de pudor. Vejam só, apalpam até minhas partes íntimas.

Pelos Céus, por que escrevo?

Com algum fim?

Algum começo?

Começo por aqui?

Começo do começo e termino no fim?

Quem me dera dantes ter escrito.

Paro. Não sou mais egoísta.

Escrevo para compartilhar.

Até mesmo os deuses partilharam suas técnicas tipográficas conosco.

Por falta de força inventiva, não sei.

Meteu-nos goela abaixo estas chaves obtusas, que por vezes limpam o nariz, coçam as orelhas ou tiram o incômodo de um cravo encravado nos pés. Os dedos, miniaturas de gente. E são gente! Não param. Por eles, morrem gente.

Mas desviei o assunto? Por mais, de que importa? No que escrevo só existe indagações, perguntas e inquietações. Quando ergo minhas cordas vocais ao firmamento, ninguém me ouve, ninguém me escuta. Por que tanto espaço? Alguém habita? Estou equivocado, ou os deuses são egoístas? Por que não dividem o céu conosco? E enquanto ninguém me escutar ou responder minhas interpelações, continuo a escrever, escrever e escrever. Criando calos.

E tu, caro escutador. És tu, que lê o que escrevo. Se caso encontrar tais respostas, não as desvie e as faça seguir em minha direção. Confesso, envergo-me em não encontrar respostas. Por quê? Se não esse: escrever, escrever e escrever, some, vira pó, desaparece. E não quero.

No fim, escrevo até a ultima meada de tinta da caneta, até a última resma de papel do armário, até o piscar do cursor deste editor de texto – provavelmente, farei uma salada de letras deste texto, e tu, que o lê, não estás a conhecê-lo em sua originalidade.

Nisso consiste a escrita, sono, chuva, falta de luz e calor.

Parece até o choro de um bebê a latejar em minha cabeça, expulsa os males e devolve-me o direito de existir.

Escrevo, também, por este pedaço de carne que acaba de atravessar meu esôfago e em breve será recebido pelas porosidades de meu estômago.

E por falar em barriga, os sucos de meu corpo correm deslizantes e não param de emitir comandos para que eu não pare de escrever.

Mas, preciso dar um ponto final nisso tudo!

Não posso desbravar noite e madrugada a escrever, assim me tornarei apenas uma caveira sonâmbula noutro dia.

E por último, escrevo para todas as formas de se amar. Para os amantes, namorados, casados, desposados, esposados, ajuntados, amazeados, amulambados. Enfim, por eles que escrevem entre si uma vida de impulsos nervosos, terminando em histórias romanescas e troca de papel de carta.

Estou sufocado, preciso parar, paro agora. Paro por você, por mim, por nós.

E amém Nossa Senhora!