quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

No Olho da Rua

Ir à rua, na concepção imagética de movimento para quem reside em cidades interioranas, não é sinônimo de ir a qualquer lugar. Passear sobre as calçadas salientes da minha cidade traz-me uma sensação de liberdade, porém se não fosse esta minha indecisa compreensão do mundo, em achar que tudo e todos estão a observar-me, poderia andar mais livremente. Mas, no entanto, isso não anula o brio ofertado por estas vias.
Quando penso que necessito de algo, seja lá o que for, mas necessito, a primeira coisa que me vem à mente é: ir à rua. Ir ao mercado, ir à farmácia, ir ao açougue, ir à loja, enfim, todas essas “idas” se resumem em uma só: ir à rua, novamente.
Prefiro sempre enveredar caminhando. Sinto o choque sonoro dos veículos em meus ouvidos; sinto o cheio do estrume fresco de um cavalo trotando com uma incômoda carroça nas costas; vejo a senilidade cruzando a faixa de pedestres tranquilamente, como se já não tivesse piedade dos motoristas que aguardam furiosamente sob um sol de cintilantes faíscas. E tudo passa. Pessoas conversam no meio da calçada – e parecem que escolhem justamente o lugar em que nossos pés cismam transitar, peço licença, somente.
Meu mapa mental já está todo cravado de tachinhas, e já sei precisamente onde devo ir desde que saio de casa. Corro pelas lojas, mesmo não comprando. Me dá prazer em ver coisas novas, cheiro de novo funciona como naftalina para as minhas narinas, tira todo o mofo que está acumulado. Passo pelo super mercado, e deparo-me com a calçada abarrotada de mastodônticas caixas guardiãs de ração humana, fico impressionado, e suponho que estou a transitar por um labirinto, mas logo encontro a entrada, e a moça das sacolas recebe-me com um singelo sorriso. Já digo de passagem, que nem tudo na rua são flores. Há de se encontrar, às vezes, atendentes mau-humorados. Nessas horas, nada melhor do que uma arma letal e infalível, o faro da predileção do consumidor.
De tudo o que tenho a fazer na rua, o lugar que mais me agrada e o qual me sinto confortavelmente numa colméia, são as bancas de jornal. Elas, em muitas das situações, são imperceptíveis a olho nu, permanecem esmilinguidas, frágeis, cabisbaixas na beira de uma esquina qualquer. Ninguém as desbrava, a maioria da população só se recorda de sua existência para a compra de Jornal, e só. Mesmo assim, já percebo muitos estabelecimentos a usurparem a verdadeira essência das Bancas, pois vejo jornais serem vendidos em padarias, lanchonetes, bares e restaurantes, um bando de maquiavélicos sem coração.
Certo dia, isso já é de praxe, pois toda vez que sigo à rua devo parar e ver a banca, mesmo sem a intenção de adquirir nadica, mas com a complacência de saber sobre os seus dias, como ela tem passado, quem a visita, o que tem recebido de novo, etc, etc e etc. Adentrei, salteando sobre maciças tábuas de madeira a forrar todo o seu piso. Deliberadamente, como de costume, cumprimentei o Senhor Elisário. A partir daí comecei a revirar o doce mel atracado nas prateleiras - saboreio sobriamente, e consigo passar horas e esquecer a vida. Repentinamente, vejo, dentre revistas de tricô, puericultura, automóveis e infinitas convicções religiosas, um exemplar surrado de pó exalado pelo leito da via, de Outras Inquisições de J. L. Borges. Não acreditei, como poderia? Um mito. Indecentemente, com todo respeito ao Senhor Elisário, arranquei o livro daquele pequeno mausoléu, limpei-o com as bordas de minha camisa, e reluzente, radiante expus, na prateleira que dava fronte ao meio fio, aquela obra quase dissecada por sorrateiras e invejosas edições.
Saindo de lá, tive a jubilosa sensação de apreciar um bem, um bem que eu estava a proporcionar, mesmo tal gesto, aos olhos de meus compatriotas, parecer uma tremenda bobagem – em dedicar um momento de felicidade a um portenho. Pensei, vez ou outra, a humanidade necessita regrar-se com água potável.
Assim, segui em direção a minha casa, após vaguear divertidamente pelo olho da rua.

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