terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Letargia

Certa vez, após aguardar intermináveis horas golpeando a madrugada, consegui engarrafar o meu sono. Hum... Danado! Era tão maleável que obtive uma tremenda sensação de estar perseguindo um pedaço de seda. Foi a primeira vez que vi o sono propriamente dito. Nunca tamanha proeza esteve tão próxima de meus afamados olhos. Perfeito, uniforme, tranquilo, assim mesmo como ele nos parece ser.
Permanecendo assim, batizado por tamanho êxtase onírico, eu, na escuridão em que banhava meu quartinho, era interminavelmente iluminado pelo sono. Um cristal fosco, mas ao mesmo tempo, parecia-me uma rachadura no céu a roubar uns instantes de raios solares do oriente. Não há arsenal discursivo o suficiente para descrevê-lo, foi a coisa mais próxima do núcleo terrestre que pude imaginar.

O meu semblante nunca escondeu de ninguém esta minha ficção pelo sono. Estive há anos, incansavelmente, buscando artifícios para que este dia chegasse. Mas eu consegui, parecia que as horas me obedeciam. Eu tinha o sono em minhas mãos, eu tinha o poder de segregar as pessoas, quando e onde quisesse. Mas era óbvio que não faria isso, pois sabia que estava a lidar com algo, aparentemente, a meu ver, traiçoeiro.
A garrafa, a qual aportava o sono, era uma dessas de condimentos que adquirimos em qualquer mercearia. Era de Canela.
A canela, instintivamente, sonha em ser o odor da paixão. Creio que ainda não conseguimos classificá-la como o perfume da atração afetiva. Canela significa a condição de ser e estar apaixonado.
Por tudo, a madrugada se esvaía, e eu permanecia incinerado pelo poder sonífero da canela. Mas, em certo momento, não mais consegui identificar quem era quem. Quem era a canela? Quem era o sono? Havia uma mistura homogênea irreconhecível dentro da garrafa. Mesmo com esse sentimento dúbio a circular em meu líquido existencial, continuava a contemplar o sono e também os resquícios da canela atracada ao corpo da garrafa. Ah, a canela, era em pó!
A canela. A garrafa. Ambas se tornaram naquele momento, o atributo que concedia habitat ao paradoxo eterno.
Em certo instante, notei que o sono se tornava triste, não era mais aquele sono estonteante que nos faz cair a seus pés. E num repentino despertar, acreditei que tamanha melancolia, fosse, por fato, a ausência de um dos pilares de seu letárgico jazido realístico. O sonho. Como pude me esquecer do sonho? O sonho que é a razão do sono. Todo mundo sonha. Sonho sonhar com o sonho.
Inutilmente, tentei travar diálogo com o sono. Ligeiramente, o indaguei:
- Como pode sono, privar-se do sonho?
No exato momento, nada se ouvia do sono, nada se ouvia a não ser um desmedido silêncio. Insisti muitas vezes. Eis, assustadoramente, que o sono se abre, e inclinado-se o vi transfigurado numa espécie de esperança da noite, trovando a resposta:
- Não penses que privo-me, privam-me!
Não merecendo nenhuma gota daquela formosa madrugada, abaixei a cabeça e não mais quis proferir um resquício se quer de palavras. Acreditei que estava a cometer um suicídio, em arrancar do sono o teu sangue, a tua carne, a tua formosura e gentileza. Já com a alma embrulhada pela vergonha, não exitei, libertei o sono. Desenrosquei minuciosamente a tampa da garrafa, e o ar se incendiou do mais chamuscado odor da canela. O sono, rapidamente, se infiltrou na atmosfera, fazendo-me tragar o teu cheiro lavrado pelo cansaço borrifado em meu rosto. Eu senti minhas olheiras se aprofundarem ainda mais, como se estivessem escavando em meus olhos a minha própria cova.

E não mais persegui o sono. O sono é impersseguível, não se pode aprisioná-lo, assim como fiz. Eu mesmo, um completo tolo, tive a desonestidade em dissecar de mim mesmo a sutileza do sonhar. Como viveria sem o sonhar? Sonhar é preciso. Sonhar alivia. Sonhar é o fim.

Um comentário:

  1. "Como viveria sem o sonhar? Sonhar é preciso. Sonhar alivia. Sonhar é o fim."
    Sonhe!

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