quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Desvelo

Confesso que hoje tive medo em pegar a caneta e começar a escrever. Fiquei horas matutando e buscando motivos sólidos para fazer. Mas eis que chega a hora. Tudo tem sua hora.
Muito se diz sobre a vida, mas, ao mesmo tempo, nada se sabe sobre a mesma. E nesse jogo de amarelinha, onde o indivíduo pula aleatoriamente no tapete da existência, estou eu aqui a contar mais um causo passado.
Esta pessoa, de quem irei falar, muito velou sua vida. Mas no fim quem acabou sendo velada, foi ela. Eu também vivo constantemente fazendo velórios. Quando estou com os músculos contraídos, faço o velório do descanço. Quando a ira me apetece - por futilidades, faço o velório da explosão. Quando a dúvida bate a minha porta, e eu inutilmente atendo, faço o velório da vida. E por fim, a cada deitar do sol, sigo com os velórios.
Acabo por acreditar que não confio em tudo. E por falar, ouço um barulho lá fora, mas não tenho coragem de meter meu nariz no brio da madrugada e ver quem é.
Bom, vamos ao que interessa.
Depois de ir ao encontro desse ser - se é que ele estava me esperando realmente, comecei a acreditar que tenho mais medo de vivo do que de morto.
E assim, adentro o receptáculo turvo e inodor do necrotério. Cinza. Um tímido e opaco - "Meus pêsames" é ouvido a cada instante. Será que as pessoas estavam pesadas? Acho que não, era o morto que pesava. E essas palavras soavam quase que por obrigação, saíam meio entre os dentes.
Nasceu em 1964. Saiu de casa com 12 anos. Se casou aos 17. Teve seu primeiro e único filho aos 21. E morreu com todos. Esses foram os acontecimentos mais marcantes de sua vida, e acaba de ser embalado na redoma do eterno.
Não vejo outra saída. Só consigo escrever com a porta trancada. Já pensei em desistir, mas de que vale? A represa do meu inconsciente não dá vazão, e para não morrer submerso por meu próprio devaneio, sigo em frente.
Olhei. Será que ele olhava pra mim? Só se fosse com os olhos do relento. Mas assim foi melhor. Assim não senti seu olhar, propriamente dito, a se cravar em meu peito.
Talvez eu esteja buscando um porquê de ter ido lá. Mas a vida é assim. Quem sabe um dia ele não venha aqui, e retribua a visita? O confundi, grandemente, com um punhado de areia pousado no fundo de um baú.
Já o sinto aqui. Já o sinto agora. Assim estou me ambandonando. Quem mais me verá? E ele? Já foi dormir.

Um comentário:

  1. Belíssimo texto, cara. A dose poética é maravilhosa e provoca uma sensibilidade marcante. Ótimo trabalho.

    ResponderExcluir