terça-feira, 11 de setembro de 2012

A mosca do mundo


Hora do almoço. Eu degustava minha parcela diária de solidão. Não sabia se era a comida que estava com um sabor amargo ou se era minha língua que já não sentia os prazeres do mundo.
Uma paciente pantomima, ajustada ao triturar do alimento, fazia-me pensar em como tudo neste mundo é feito para ser destruído e parar no estômago de alguém.
De repente, ouço um zumbido, algo como um enxame de abelhas. Quando olhei bem para a pequena janela da cozinha, percebi que minha casa estava sendo invadida por moscas. Eram terríveis, grandes, pretas, cintilantes. Rodopiavam, se amontoavam como se fossem gente. Meu desespero não foi menor. Eu, sempre eu, que mantive a casa limpa, longe desses insetos inescrupulosos e libertinos. Mas elas não ouviam o som dos gritos e das batidas do meu coração. Acasalavam-se ali mesmo, em cima da pia. O que foi? Pensei. Foi Noé, Noé quem levou um casal de moscas na arca e as salvou do terrível dilúvio. As moscas, no passado, já me devoraram de minha pior morte. Elas eram grandes.
É a vizinha. Pensei. Vinham da pocilga. Mas não havia pocilga, a não ser aquela que estava sobre minha pele. Minha pele era fétida. Atraía moscas. Como? Num momento, elas começaram a pousar no meu prato. Os caroços de feijão se confundiam com seus enormes e afilados corpos. Suas asas pareciam de plástico, de celofane.
O inseticida estava ali, bem perto, na gaveta do armário. Mas algo impedia que eu levasse a mão até a porta... Não, alguma mosca me puxava para trás, não uma, mas uma legião. Corri para o quarto, e enquanto elas consumavam seu horroroso rito profano, eu me escondi debaixo da cama. E chorava. Escondi-me das moscas, escondi-me do mundo. Não suportava mais o zum zum zum do mundo. Eu era mosca, as pessoas eram moscas, o mundo era mosca. Todos corriam, enfim, em busca de suas porcarias. O mundo é uma bosta, é um grande esgoto e nós, todos nós, inclusive, com veemência, eu sou mosca. A passos calmos, andei um pouco até a cozinha, o ato já havia se consumado. Elas emporcalharam tudo, deixaram apenas seus restos, indiferentes. E de mim? O que restou? Eu. Só eu havia sobrevivido aquele holocausto de varejeiras. Só eu soube como e quando me esconder. A fúria do mundo era complexa demais para a simplicidade do meu desespero. Mas eu era mosca, eu ainda sou mosca. Elas vieram até mim por afinidade e não por terem farejado à distância algum sinal de sujeira. Mas eu percebi que até então eu não sabia que era mosca, e nem fazia noção. Porque se eu soubesse que eu era mosca antes do ataque das moscas, eu teria me matado, não teria agüentado o peso dessa verdade. E também ninguém, ninguém pode saber que é mosca antes de ser atacado por um bando de moscas. Porque a máquina do mundo é complexa demais para a simplicidade de uma mosca.

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