quinta-feira, 4 de outubro de 2012

De repente, leitor


Esta é uma tentativa de reunir idéias gerais sobre a leitura. Baseia-se em fragmentos de discussões que participei em diversas oportunidades. Tentarei sintetizar, de acordo com inquietações pessoais, alguns pontos sobre o tão caloroso tema, formação de leitores. Bem, posso, por vezes, cair em contradição, mas acredito que tenho indulgencias suficientes, pois sei que trato de um tema tão delicado, que nem mesmo a experiência poderia bater um martelo e nos dar uma posição segura e correta. Isto, apenas, se trata a mim, tudo o que vejo, tudo o que penso, brotou unicamente das minhas experiências como leitor, do meu amor aos livros. Se assim estamos acordados, espero dar procedimento.
 A primeira coisa que gostaria de tratar, e tem se propalado feito uma epidemia pela mídia, é o que, não só eu, mas outros interessados pelo tema, chamo de "moralização da leitura". Algo completamente estúpido, e está fortemente sendo impulsionada pelas campanhas de "incentivo”. Primeiramente, é inconcebível essa ideia de "incentivo a leitura". Leitura é uma construção, é algo que só pode dar por via de uma escada, degrau por degrau. Assim como “não podemos nos livrar de um hábito atirando-o pela janela”, também não podemos incorporar nenhuma prática bruscamente, nem mesmo por meio de boa vontade ou “voluntarismos”, necessariamente. Ninguém nasce sabendo ler, ninguém nasce, se quer, sabendo de si mesmo, tendo compreensão plena de sua existência no mundo. Tudo é uma construção, e com a leitura não é diferente. Essa ideia do incentivo é apenas uma estratégia dos pedantes a provocar uma espécie de "apartheid". Recentemente o Jornal O Globo lançou uma “campanha” para o incentivo da leitura de jornais. Um dos lemas, se me lembro bem, era “Quem lê jornal é mais”. Ah, sim. Mais o quê? Disso, não obstante, é comum vermos frases generalizantes (apesar de achar que a generalização é um pressuposto para o pensamento) como "os que não gostam de ler são burros, estúpidos e ignorantes... Os que gostam de ler são legais, interessantes e inteligentes." Posso provar que na realidade não é bem assim. Nem sempre quem nasce em meio a livros e faz parte do mundo da leitura é “sinônimo de virtudes cívicas”. Vejam só os grandiosos exemplos que temos, Bush, o juiz Nicolau dos Santos Neto, empresários matreiros, deputados corruptos, engenheiros inescrupulosos, o desalgemado José Sarney, todos eles fazem parte do mundo da leitura, e mesmo assim, não merecem nossa admiração. Então, por si só, essa moralização é falsa.
 Agora, quero enfatizar algo muito importante. Uma pergunta que nos fica à volta quando, pela primeira vez, algo nos incita a ir em direção aos livros. Para que ler? Por que ler? Posso, com devido conhecimento de causa, arriscar uma resposta. Para atingir, alcançar, que seja ao menos uma fatia, a sabedoria. A sabedoria está impregnada em muitas circunstâncias da vida. Muitos teóricos têm discorrido sobre a sabedoria, ou onde encontrá-la. Um dos meus favoritos, o crítico literário norte-americano Harold Bloom, diz que no mundo de hoje a informação é facilmente encontrada, mas onde encontrar a sabedoria? Outros, como Bertrand Russell, ensaia em dizer que é possível encontrar a sabedoria, na hipótese em que seus aspectos podem ser ensinados por via da instrução formal, propriamente, pela escola, é bem provável que resulte da aprendizagem da história e da grande literatura (entende-se “grande literatura, talvez, o conhecimento e a compreensão das noções gerais da cultura, do lugar do pensamento e do homem na história, ou seja, do conhecimento e contato com os clássicos). A literatura fala da vida. E mais uma vez está implícito nesta idéia a compreensão de que a sabedoria é um conjunto de noções e saberes que nos é oferecido por meio de uma história de vida e toda a relação “bruta” que podemos travar com o mundo.


Quem lê está em permanente contraste com os mais diversos problemas que a humanidade se depara, ou, até mesmo, foge. Homicídios, suicídios, adultério, amor, bovarismos... Tudo isso encontramos nos livros. Os livros são perigosos, porque os melhores livros já escritos tratam de problemas que ninguém deseja enfrentar diretamente. Um escritor é alguém que está em constante "reação" com a vida. E quando digo reação, quero dizer no sentido de "reagir". (e peço desculpa, nos tempos em que vivemos, por usar a palavra "reação" em seu verdadeiro sentido). É como um sujeito que, pela primeira vez, põe o dedo num gatilho e, consequentemente, dispara um tiro. O impulso provocado pela arma pode ser brutal, é uma reação que talvez machuque o sujeito, caso ele não esteja acostumado a manusear armas de fogo. E assim é a vida, uma constante reação. Precisamos voltar com essa ideia que os livros são perigosos, talvez só assim faça com que as pessoas se interessem por eles, efetivamente. E isto não é um devaneio meu, filmes, a própria história, nos dão lições disso. Mas, por outro lado, não compartilho com ideais românticos a respeito da mudança social, ou aquilo que se chama de “transformação social”, que a literatura possa provocar. Como a escrita é uma invenção e artifício humano, intrinsecamente, por si só, é política. Quando escrevemos, pensamos, ou seja, escrever é o mesmo que pensar. Gonçalo Tavares, um grande escritor português, sintetiza essa questão, “se penso, não escrevo”. Se quero transformar a escrita, ou a leitura, em arma, em guarnição, não terei absolutamente nenhum resultado, muito pelo contrário, as vezes tenho um efeito totalmente distorcido em relação a minha primeira idéia. Penso que a crítica literária deve ser pragmática neste sentido.
Ou Talvez José Saramago tenha razão, talvez tenhamos que alvejar certas palavras, quando coligadas a leitura, como: "literatura, compromisso, transformação social..." Devemos colocá-las de molho, cada uma delas, reencaminha-las a um sentido pleno de integralidade, restaurá-la dos desgastes do uso, das vulgaridades da rotina. Pois é bem sabido que não nos consta que a leitura dos "Fioret", de Santo Angostinho, tenha salvo alguma alma das chamas da inquisição, ou tenha lavado as mãos da Igreja, que, por sinal, até hoje, estão sujas...
Outro fantástico atributo da leitura é sua plena intertextualidade. Quanta felicidade não sentimos quando, ao ler um livro, nos deparamos com a inextrincável cadeia de diálogos que encontramos por meio de uma só narrativa, ou quando inferimos e percebemos que os diálogos se entrelaçam, se abraçam. Um livro conversa com outro, mesmo que essa não seja a intenção diretamente. E eu acredito que isso se dá por conta do que chamo de "subjetividade do mundo", aquela que talvez não percebamos diretamente, uma subjetividade que se dá por meio de "conversações indizíveis", uma "sincronicidade”. Essa é a subjetividade do mundo. No entanto, acho que posso aqui abrir um espaço para dizer como a leitura pode nos convidar a solidão, ou a uma individualidade permanente. Não quero discorrer sobre a “formação do caráter” do leitor, somos o que somos, independente de como ou do que lemos. Somos seres errantes, e cada um vai buscar nos livros aquilo que é de melhor para si, aquilo que lhe ajuda a enxergar com mais nitidez sua própria vocação como ser humano.
 Toda vez que falo deste tema, a leitura, a formação do leitor, sinto-me como se estivesse em órbita, em meio ao espaço sideral, num vão, e em minha volta estivessem dezenas de satélites a rodar, sem um ponto fixo. Mas continuo lendo porque quero a sabedoria, e a minha única razão precípua para continuar lendo, é a sabedoria, encontrar a sabedoria. Mas um dos grandes problemas é saber onde é que se encontra a sabedoria. Como já disse, nos dias de hoje, é intensamente complicada essa questão. As informações correm no rabo de um cometa e nem por isso são tão dignas de garantia, de serem informações válidas. Talvez tenhamos a sorte de encontrar, em alguma trilha da vida, um professor, ou qualquer outra pessoa, que nos oriente e nos indique um caminho seguro. Mas, não se engane, na maioria das vezes, encontramo-nos sós! E aqui, digo da minha própria experiência como leitor, um leitor, para mim, todo leitor se dá por meio do acaso, e por isso, na maioria das vezes, é preciso dar chances ao acaso.
 Ademais, gostaria de finalizar de uma forma bem pessoal. Acredito que uma das grandes “revoluções” que a leitura pode provocar na vida de uma pessoa é a alteridade. Ser capaz de compreender o outro na sua mais nobre plenitude, e é, também, para isso que lemos, para viver inúmeras vidas num só corpo e sair de uma espécie de “lugar-comum”. Virgínia Woolf disse que o melhor conselho a se seguir quando se trata de leituras é não seguir conselho algum, é experimentar com a própria língua a liberdade que é inerente a essa prática. Mas, veja bem, experimentar a liberdade da leitura, não significa ser arrogante, tanto com o acaso quanto com as pessoas. Porque o tempo é curto, e não nos é permitido ler tudo o que há para ser lido. Então seria completamente inútil desperdiçar nossas forças lendo de modo "desavisado", "ou molhando a casa inteira com o intuito de aguar apenas um vaso de rosas".
 Não quero dizer que alcancei sabedoria, mas queria deixar algo bem pessoal nesta nota. Que, na verdade, não é minha, propriamente. É de todos os livros que já li, de todos os escritores que me foram essenciais e que amei e de todos os sábios que encontrei pela vida.

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