Numa
manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Thiago Leite deu por si
agachado ao chão como um animal imundo, como se esperasse algum sinal de
estupefação para saltar-lhe à garganta. O horror disse, pela primeira
vez, "aqui estou", quando avistou, pelo vidro da janela, vultos que
pareciam de gente, que saltavam para o vazio como se tivessem acabado de
escolher uma morte. Agora o horror aparecia
a cada instante ao remover-se, ao olhar para a branca parede e uma
chapa de alumínio retorcida que estava a cobrir a entrada para o sótão.
Viu refletida uma cabeça irreconhecível, um braço, uma perna, um abdómen
desfeito, um tórax espalmado. Apertou bem as pálpebras para ver se os
olhos impedissem que tamanho horror lhe entrasse pela mente. Sepultados
debaixo de sua cama, sob montes de areia, viu cadáveres em ponto inicial
de putrefação. Sentiu em sua boca uma ânsia, e vomitou cinzas, como se
de lixo se tratasse. Que tenha conseguido suportar a repugnância que
estas horas provavelmente lhe causaram, não pediu nada, não rogou a seus
anjos da guarda, nem passou ao ateísmo. Não perdeu a razão, mas soube
que se há um mundo, é só um mundo, e é esse o nome que lhe ensinaram a
dar, a esta pertinaz e corrosiva câmara de produzir mortos, como ficou
demonstrado e desgraçadamente continuará a demonstrar-se. Sentiu-se
terrivelmente igual a todos os seres humanos onde quer que estejam e
seja qual for o credo, intoxicado por esse pensamento, uma heresia,
compreendeu que da besta o próprio homem acabou por fazer do homem uma
besta.
Sentir-se eterno é dilatar o espaço que se estabelece entre as horas e a demolição do corpo. As letras nos servem de escudo contra esta infausta servidão da existência. A hora das letras é o único espaço pelo qual poderemos nos sentir eternos, sem mágoas e marcas de acharmos que não cumprimos, por completo, nossa parcela de esclarecimento do mundo. Venha, sente-se e sinta "A Hora das Letras".
quinta-feira, 27 de dezembro de 2012
terça-feira, 13 de novembro de 2012
O Sonho do Livro
Nos últimos dias
tenho me deparado, constantemente, com fatos que versam sobre o fim do livro.
Sim, o livro, aquilo que também, em seu conjunto, é chamado de universo. É
certo que entro em pânico, meus ralos e poucos pêlos eriçam-se e não sei o que
mais pensar. E isto é só por sentir que eles desaparecerão em algumas décadas,
como mesmo afirmam certos arautos da informática.
Seguramente,
tudo não passa de um enorme equívoco e exagero, pois se fala do fim do livro,
não do mundo... Mas, por outro lado, se eles são sinônimos de universo, há que
manter guarda.
Não quero
discorrer sobre os pormenores da situação, o que dizem, em específico, seus
defensores e inquisidores. Diante de tal desespero, resigno-me e aceito o
brutal destino que os deuses me reservaram.
Nesta semana,
voltando para casa após uma triste jornada de suor e cansaço, passo em frente à
biblioteca da cidade. Lugar onde já sou fiel frequentador, desde os tempos em
que as enciclopédias eram as melhores companhias para um homem curioso. Eis que
surge-me uma saída, que, nem mesmo, ao longo de toda essa discussão pelo fim do
livro, seus panegiristas parecem ter pensado. Já que o prelúdio de um fim para
os impressos se faz presente, não medi esforços, e comecei a fomentar o desejo
de recolher e salvar todos os que eu encontrasse pela frente. Pensei, no exato momento,
de passagens que, nos pretéritos da memória, fazem-se tão presentes como as
relações entre uma causa e um efeito. Não sabia ao certo como faria, mas, o que
resta a um homem comum, senão aceitar aquilo que o acaso lhe impõe? Adentrei ao
simples recinto. O odor das prateleiras e suas leais instruções faziam-me
inteiro e, ao mesmo tempo, impotente. O apelo inaudito dos volumes gerava em
meu ouvido interior um embate entre centenas de milhares de páginas e a
brevidade da vida. Angustiado pela pródiga presença das prateleiras que se
levantavam diante de mim, esforcei-me para lembrar a ordem e o número de alguns
exemplares. Comecei, assim, a tatear o dorso de suas colunas. Considerei, então, que estava no fim dos
tempos, e que meu destino de único sacerdote da eternidade me daria o direito
de intuir sobre o fim dos que estavam a um passo de mim. É certo que deveria
tomar precauções, um cuidado excessivo com a ética alheia é imprescindível.
Chegando mais perto, fui acalorando ainda mais o desejo, procurando espaços
vazios por entre as estantes e observando passos. Sorte, claro, que a
biblioteca é estruturalmente humilde, conta apenas com duas secretárias que se
revezam em atender os pobres frequentadores. Além do mais, também não contamos
com monitoramentos de segurança, o que foi primordial. Outro cuidado peculiar é
sempre entrar com alguma sacola em mãos, evidente que se deve ter um local bem
discreto para se levar os livros, pois não há possibilidade de sair com um
exemplar sem antes passar pela agenda de registros e empréstimos. Voltei à
reflexão anterior. O fim, o incêndio mortal da memória e das faculdades
humanas. Como mesmo apregoou César, pode-se, sim, afirmar que muitas delas são
memórias de infâmias, mas o ato da Criação é uma sentença mágica, capaz de
conjugar esses males. Assim fui vencendo os anos, a areia secular do tempo, a
fatalidade de se povoar o espaço; fui entrando em posse do que já era meu. Do
mundo não se pode descer, de uma biblioteca não se pode sair. Agarrei o
primeiro volume, não soube, de momento, o título, mas senti que deveria trazê-lo,
pois também era filho da imensa legião. Aproximou-me um preciso esplendor,
assim como sente um náufrago a ardência em suas veias de se avistar um navio em
alto-mar, e com ele a possibilidade de salvação.
Dediquei longas
horas para aprender a configuração e ordenamento das prateleiras. Cada
aprendizado me concedia um ponto de luz, e assim pude fixar na mente as regras
e formas que delineavam todo o conjunto de armários do espaço. Não falarei da
fadiga que proporcionou este meu labor. Saí de forma natural, despedi-me de uma
das simpáticas secretárias, sem ao menos desconfiar que ali, naquele instante,
havia ocorrido um desvio de propriedade para o começo do bem da história
humana.
Ao sair,
senti-me perdido por haver perdido um espaço no tempo. Na rua em frente,
abriu-se um labirinto, segui pensando estar a caminho de casa. Enternecido,
pensei que poderia formar todas as coisas que foram em coisas que serão, pois as
causas não me bastam para entender o tudo, interminavelmente. Folheei as
páginas do livro em minhas mãos, por entre as ruas, avistei as origens narradas
ali. Vi montanhas, águias, correntes de ar e água. Uma panaceia aquela mesma com
a qual se cura a felicidade dos homens, fazia-se presente em meio a invariável
paisagem urbana. Vi cães que se desfiguravam em rostos humanos, vi Deus sem a
fantástica face por detrás de um ponto de ônibus; vi Píndaro na figura de um jornaleiro
cantando a expressão máxima do tempo: a efêmera composição da carne e a perene
força da mensagem; vi o caule de um cometa que formava uma só verdade. Do
entendimento de tudo, consegui também entender a escrita do livro.
Chegando ao meu
apartamento, confundi gradualmente tudo com meu destino; formávamos um só, o
livro e eu, e um homem, afinal, é feito de suas circunstâncias. Do incansável labirinto eterno, assim pude
desfrutar com precisa pertinência do exemplar roubado. Não havia pensado até
então em roubo, e nem mesmo o considero desta forma, nem sei o porquê de tê-lo
escrito. Morra comigo o mistério que está escrito nesta missão. Quem sonhou o
universo? Quem desenhou os espelhos? Quem pensou os ardentes desígnios que poderá
ter um homem? Este homem, de certa forma,
sou eu. Que importa as formas e o sentido figurado da vida, se agora perco
parte de minha existência dedicando-me a exceder a astúcia da morte? Não
importa a fórmula que sou feito. Se sou uma formiga em meio a um castelo de
inconveniências, de uma nação que importa daquele outro lado idéias e efeitos
que se voltam contra os homens, desprezo, e sigo assim, multiplicando-me até
encher o cárcere do tempo. Dispenso qualquer aproximação com a verdade, se é
que tal aproximação seja possível, mas não ignoro que, mesmo inconscientemente,
ensaiei encontros com a terrífica verdade do tempo. Os sonhos são as linhas que
costuram o mundo, e este sonho está dentro de outro sonho. Sonha-me a
eternidade. Seguramente, o caminho que terei de percorrer para salvar os livros
é interminável e morrei antes mesmo de despertar para a escuridão de sombras e
simulacros, de pobres vozes humanas, do mundo, do universo.
quinta-feira, 1 de novembro de 2012
O vazio de ser
Mão há como negar. Alguma coisa
tem mudado e não posso mais ignorar. O que procuro força-me a escalar uma série
de andaimes interiores, e você sabe quão incômodo é ter andaimes interiores? É
o mínimo que desejo. Minha voz e pensamentos revelam-se de forma estridente,
não posso mais suportar essa angústia.
Passo por uma via e me deparo com
o absurdo do mundo. Olho em direção ao cemitério da cidade e vejo uma coleção
de pequenos castelos de concreto, o pó do mundo ali reside tranquilamente em
meio aos desastres cotidianos que se vão seguindo dia após dia. Quem saberá de
onde vem esse desejo intenso de pular de uma ponte, de pular para dentro de si.
É o infinito, não cabe. O desejo é o infinito, eu sinto. Até o medo da morte se
evapora, e torna-se uma longínqua idéia de pavor. Não tenho medo de morrer.
Nesses dias não tive se quer pena de mim mesmo, quis me atirar dentro do forno
com o gás ligado, deitei a cabeça sobre a estreita grelha e permaneci por
alguns segundos. O cheiro do gás foi renovador. Até certo ponto, asfixiou todos
os pensamentos mórbidos que me ocupavam espaços desnecessários na mente, mas
que logo deram espaço a outros mais aterradores ainda, houve uma mutação.
O cheiro do mundo. Enquanto não me livrar desse último
desconforto, continuarão a lançar-me chorume na cara. Os dias se escorrem
lentamente aguardando com que eu tome a decisão. Tomar essa decisão é suportar
a humilhação a qual todos, um dia, iremos passar. Subo as escadas que dão
sentido a minha casa, e subo pensando que estou em direção ao inferno. Subo numa
cadeira onde, do alto teto, há uma corda adequada ao formato do meu pescoço,
pronta para o pulo final. O pulo é esse. O pulo para o infinito. Pular da
cadeira, talvez, seria a síntese desse desejo do infinito que me percorre.
Entro no quarto e vejo estatuetas de pensamentos passados. Percorro,
cuidadosamente, cada idéia não manifestada, cada frase engolida, cada palavra
mastigada, cada pensamento aprisionado. Muita coisa se passa perante essa
aldeia de pensamentos petrificados. Erguem-se estátuas de antigos líderes e ídolos,
admirados em algum momento da vida. Imponentes, destemidos, seus olhos sem
retina, suas mãos sem unhas, seus pés atracados ao chão, imobilizados pelo
tempo, lanço em direção a estes um martelo, e quebro-lhes cada canto, cada
membro. A destruição.
Tenho angustiado a velha criança.
Mas, penso, a velha criança está desaparecida, como as milhares que se perdem
de seus pais todos os dias. A minha velha criança se perdeu em meio ao tumulto
do mundo. Está decepcionada, ou decapitada em algum canto, em algum país
distante, servindo de alimento para alguém. Minha ansiedade é o começo do meu
fim. E o meu fim é o começo do meu começo, é aqui que começo a viver, a partir
do meu fim. Vivo momentos intensos, e sei que estou no fim. Toda a vida se
passou e eu não passei, permaneci sempre enclausurado dentro do meu quarto,
observando a auto-estrada, o velho martírio de ser alguém preenchido por uma
monotonia de pensamentos vazios. No passado, o bairro em que moro foi um centro
de prostituição. Quem sabe o terreno onde se encontra minha casa já não deu
espaço para uma grande casa de cortesãs? As putas já gozaram por aqui. A
libertinagem já foi palavra de ordem por essas bandas. Agora restam,
resignadas, as velhas mortas na beira da calçada, com seus assuntos cotidianos
e tediosos. Todos aqui julgam viver com intensidade, mas poucos sabem o que é
percorrer seus próprios alpendres.
Encontro algo para revelar essa
angustia. A certeza que estou enlouquecendo ou ficando cada vez mais lúcido. A
lucidez é um preço que se paga quando enlouquecemos. Os loucos são lúcidos que
se abstêm de não reproduzir o reproduzível. A lucidez é amarga e nem todos
poderiam suportar seu peso, só os loucos são capazes de viver sob o domínio de
idéias contraditórias. Meu passado está em meus bolsos, e me pesa como pedras.
Aproveito o peso, aproveito as marteladas em direção ao chão, em direção ao
pulo, e perco absolutamente o medo de mergulhar nas asas lamacentas desse rio.
quinta-feira, 4 de outubro de 2012
De repente, leitor
Esta é uma tentativa de reunir idéias gerais sobre
a leitura. Baseia-se em fragmentos de discussões que participei em diversas oportunidades.
Tentarei sintetizar, de acordo com inquietações pessoais, alguns pontos sobre o
tão caloroso tema, formação de leitores. Bem, posso, por vezes, cair em
contradição, mas acredito que tenho indulgencias suficientes, pois sei que
trato de um tema tão delicado, que nem mesmo a experiência poderia bater um
martelo e nos dar uma posição segura e correta. Isto, apenas, se trata a mim,
tudo o que vejo, tudo o que penso, brotou unicamente das minhas experiências
como leitor, do meu amor aos livros. Se assim estamos acordados, espero dar
procedimento.
A primeira coisa que gostaria de tratar, e tem
se propalado feito uma epidemia pela mídia, é o que, não só eu, mas outros
interessados pelo tema, chamo de "moralização da leitura". Algo
completamente estúpido, e está fortemente sendo impulsionada pelas campanhas de
"incentivo”. Primeiramente, é inconcebível essa ideia de "incentivo a
leitura". Leitura é uma construção, é algo que só pode dar por via de uma
escada, degrau por degrau. Assim como “não podemos nos livrar de um hábito
atirando-o pela janela”, também não podemos incorporar nenhuma prática
bruscamente, nem mesmo por meio de boa vontade ou “voluntarismos”,
necessariamente. Ninguém nasce sabendo ler, ninguém nasce, se quer, sabendo de
si mesmo, tendo compreensão plena de sua existência no mundo. Tudo é uma
construção, e com a leitura não é diferente. Essa ideia do incentivo é apenas
uma estratégia dos pedantes a provocar uma espécie de "apartheid". Recentemente
o Jornal O Globo lançou uma “campanha” para o incentivo da leitura de jornais.
Um dos lemas, se me lembro bem, era “Quem lê jornal é mais”. Ah, sim. Mais o
quê? Disso, não obstante, é comum vermos frases generalizantes (apesar de achar
que a generalização é um pressuposto para o pensamento) como "os que não
gostam de ler são burros, estúpidos e ignorantes... Os que gostam de ler são
legais, interessantes e inteligentes." Posso provar que na realidade não é
bem assim. Nem sempre quem nasce em meio a livros e faz parte do mundo da
leitura é “sinônimo de virtudes cívicas”. Vejam só os grandiosos exemplos que
temos, Bush, o juiz Nicolau dos Santos Neto, empresários matreiros, deputados
corruptos, engenheiros inescrupulosos, o desalgemado José Sarney, todos eles
fazem parte do mundo da leitura, e mesmo assim, não merecem nossa admiração.
Então, por si só, essa moralização é falsa.
Agora, quero enfatizar algo muito importante.
Uma pergunta que nos fica à volta quando, pela primeira vez, algo nos incita a
ir em direção aos livros. Para que ler? Por que ler? Posso, com devido
conhecimento de causa, arriscar uma resposta. Para atingir, alcançar, que seja
ao menos uma fatia, a sabedoria. A sabedoria está impregnada em muitas
circunstâncias da vida. Muitos teóricos têm discorrido sobre a sabedoria, ou
onde encontrá-la. Um dos meus favoritos, o crítico literário norte-americano
Harold Bloom, diz que no mundo de hoje a informação é facilmente encontrada,
mas onde encontrar a sabedoria? Outros, como Bertrand Russell, ensaia em dizer
que é possível encontrar a sabedoria, na hipótese em que seus aspectos podem
ser ensinados por via da instrução formal, propriamente, pela escola, é bem
provável que resulte da aprendizagem da história e da grande literatura (entende-se
“grande literatura, talvez, o conhecimento e a compreensão das noções gerais da
cultura, do lugar do pensamento e do homem na história, ou seja, do conhecimento
e contato com os clássicos). A
literatura fala da vida. E mais uma vez está implícito nesta idéia a compreensão
de que a sabedoria é um conjunto de noções e saberes que nos é oferecido por
meio de uma história de vida e toda a relação “bruta” que podemos travar com o
mundo.
Quem lê está em permanente contraste com os mais diversos problemas que a humanidade se depara, ou, até mesmo, foge. Homicídios, suicídios, adultério, amor, bovarismos... Tudo isso encontramos nos livros. Os livros são perigosos, porque os melhores livros já escritos tratam de problemas que ninguém deseja enfrentar diretamente. Um escritor é alguém que está em constante "reação" com a vida. E quando digo reação, quero dizer no sentido de "reagir". (e peço desculpa, nos tempos em que vivemos, por usar a palavra "reação" em seu verdadeiro sentido). É como um sujeito que, pela primeira vez, põe o dedo num gatilho e, consequentemente, dispara um tiro. O impulso provocado pela arma pode ser brutal, é uma reação que talvez machuque o sujeito, caso ele não esteja acostumado a manusear armas de fogo. E assim é a vida, uma constante reação. Precisamos voltar com essa ideia que os livros são perigosos, talvez só assim faça com que as pessoas se interessem por eles, efetivamente. E isto não é um devaneio meu, filmes, a própria história, nos dão lições disso. Mas, por outro lado, não compartilho com ideais românticos a respeito da mudança social, ou aquilo que se chama de “transformação social”, que a literatura possa provocar. Como a escrita é uma invenção e artifício humano, intrinsecamente, por si só, é política. Quando escrevemos, pensamos, ou seja, escrever é o mesmo que pensar. Gonçalo Tavares, um grande escritor português, sintetiza essa questão, “se penso, não escrevo”. Se quero transformar a escrita, ou a leitura, em arma, em guarnição, não terei absolutamente nenhum resultado, muito pelo contrário, as vezes tenho um efeito totalmente distorcido em relação a minha primeira idéia. Penso que a crítica literária deve ser pragmática neste sentido.
Quem lê está em permanente contraste com os mais diversos problemas que a humanidade se depara, ou, até mesmo, foge. Homicídios, suicídios, adultério, amor, bovarismos... Tudo isso encontramos nos livros. Os livros são perigosos, porque os melhores livros já escritos tratam de problemas que ninguém deseja enfrentar diretamente. Um escritor é alguém que está em constante "reação" com a vida. E quando digo reação, quero dizer no sentido de "reagir". (e peço desculpa, nos tempos em que vivemos, por usar a palavra "reação" em seu verdadeiro sentido). É como um sujeito que, pela primeira vez, põe o dedo num gatilho e, consequentemente, dispara um tiro. O impulso provocado pela arma pode ser brutal, é uma reação que talvez machuque o sujeito, caso ele não esteja acostumado a manusear armas de fogo. E assim é a vida, uma constante reação. Precisamos voltar com essa ideia que os livros são perigosos, talvez só assim faça com que as pessoas se interessem por eles, efetivamente. E isto não é um devaneio meu, filmes, a própria história, nos dão lições disso. Mas, por outro lado, não compartilho com ideais românticos a respeito da mudança social, ou aquilo que se chama de “transformação social”, que a literatura possa provocar. Como a escrita é uma invenção e artifício humano, intrinsecamente, por si só, é política. Quando escrevemos, pensamos, ou seja, escrever é o mesmo que pensar. Gonçalo Tavares, um grande escritor português, sintetiza essa questão, “se penso, não escrevo”. Se quero transformar a escrita, ou a leitura, em arma, em guarnição, não terei absolutamente nenhum resultado, muito pelo contrário, as vezes tenho um efeito totalmente distorcido em relação a minha primeira idéia. Penso que a crítica literária deve ser pragmática neste sentido.
Ou Talvez José Saramago tenha razão, talvez
tenhamos que alvejar certas palavras, quando coligadas a leitura, como:
"literatura, compromisso, transformação social..." Devemos colocá-las
de molho, cada uma delas, reencaminha-las a um sentido pleno de integralidade,
restaurá-la dos desgastes do uso, das vulgaridades da rotina. Pois é bem sabido
que não nos consta que a leitura dos "Fioret", de Santo Angostinho,
tenha salvo alguma alma das chamas da inquisição, ou tenha lavado as mãos da
Igreja, que, por sinal, até hoje, estão sujas...
Outro fantástico atributo da leitura é sua plena
intertextualidade. Quanta felicidade não sentimos quando, ao ler um livro, nos
deparamos com a inextrincável cadeia de diálogos que encontramos por meio de
uma só narrativa, ou quando inferimos e percebemos que os diálogos se
entrelaçam, se abraçam. Um livro conversa com outro, mesmo que essa não seja a
intenção diretamente. E eu acredito que isso se dá por conta do que chamo de
"subjetividade do mundo", aquela que talvez não percebamos
diretamente, uma subjetividade que se dá por meio de "conversações indizíveis",
uma "sincronicidade”. Essa é a subjetividade do mundo. No entanto, acho
que posso aqui abrir um espaço para dizer como a leitura pode nos convidar a
solidão, ou a uma individualidade permanente. Não quero discorrer sobre a “formação
do caráter” do leitor, somos o que somos, independente de como ou do que lemos.
Somos seres errantes, e cada um vai buscar nos livros aquilo que é de melhor
para si, aquilo que lhe ajuda a enxergar com mais nitidez sua própria vocação
como ser humano.
Toda vez que falo deste tema, a leitura, a
formação do leitor, sinto-me como se estivesse em órbita, em meio ao espaço
sideral, num vão, e em minha volta estivessem dezenas de satélites a rodar, sem
um ponto fixo. Mas continuo lendo porque quero a sabedoria, e a minha única
razão precípua para continuar lendo, é a sabedoria, encontrar a sabedoria. Mas
um dos grandes problemas é saber onde é que se encontra a sabedoria. Como já
disse, nos dias de hoje, é intensamente complicada essa questão. As informações
correm no rabo de um cometa e nem por isso são tão dignas de garantia, de serem
informações válidas. Talvez tenhamos a sorte de encontrar, em alguma trilha da
vida, um professor, ou qualquer outra pessoa, que nos oriente e nos indique um
caminho seguro. Mas, não se engane, na maioria das vezes, encontramo-nos sós! E
aqui, digo da minha própria experiência como leitor, um leitor, para mim, todo
leitor se dá por meio do acaso, e por isso, na maioria das vezes, é preciso dar
chances ao acaso.
Ademais, gostaria de finalizar de uma forma
bem pessoal. Acredito que uma das grandes “revoluções” que a leitura pode
provocar na vida de uma pessoa é a alteridade. Ser capaz de compreender o outro
na sua mais nobre plenitude, e é, também, para isso que lemos, para viver
inúmeras vidas num só corpo e sair de uma espécie de “lugar-comum”. Virgínia
Woolf disse que o melhor conselho a se seguir quando se trata de leituras é não
seguir conselho algum, é experimentar com a própria língua a liberdade que é
inerente a essa prática. Mas, veja bem, experimentar a liberdade da leitura,
não significa ser arrogante, tanto com o acaso quanto com as pessoas. Porque o
tempo é curto, e não nos é permitido ler tudo o que há para ser lido. Então
seria completamente inútil desperdiçar nossas forças lendo de modo
"desavisado", "ou molhando a casa inteira com o intuito de aguar
apenas um vaso de rosas".
Não quero dizer que alcancei sabedoria, mas
queria deixar algo bem pessoal nesta nota. Que, na verdade, não é minha,
propriamente. É de todos os livros que já li, de todos os escritores que me
foram essenciais e que amei e de todos os sábios que encontrei pela vida.
terça-feira, 11 de setembro de 2012
A mosca do mundo
Hora do almoço. Eu degustava
minha parcela diária de solidão. Não sabia se era a comida que estava com um
sabor amargo ou se era minha língua que já não sentia os prazeres do mundo.
Uma paciente pantomima, ajustada
ao triturar do alimento, fazia-me pensar em como tudo neste mundo é feito para
ser destruído e parar no estômago de alguém.
De repente, ouço um zumbido, algo
como um enxame de abelhas. Quando olhei bem para a pequena janela da cozinha,
percebi que minha casa estava sendo invadida por moscas. Eram terríveis,
grandes, pretas, cintilantes. Rodopiavam, se amontoavam como se fossem gente.
Meu desespero não foi menor. Eu, sempre eu, que mantive a casa limpa, longe
desses insetos inescrupulosos e libertinos. Mas elas não ouviam o som dos
gritos e das batidas do meu coração. Acasalavam-se ali mesmo, em cima da pia. O
que foi? Pensei. Foi Noé, Noé quem levou um casal de moscas na arca e as salvou
do terrível dilúvio. As moscas, no passado, já me devoraram de minha pior
morte. Elas eram grandes.
É a vizinha. Pensei. Vinham da
pocilga. Mas não havia pocilga, a não ser aquela que estava sobre minha pele.
Minha pele era fétida. Atraía moscas. Como? Num momento, elas começaram a
pousar no meu prato. Os caroços de feijão se confundiam com seus enormes e afilados
corpos. Suas asas pareciam de plástico, de celofane.
O inseticida estava ali, bem
perto, na gaveta do armário. Mas algo impedia que eu levasse a mão até a
porta... Não, alguma mosca me puxava para trás, não uma, mas uma legião. Corri
para o quarto, e enquanto elas consumavam seu horroroso rito profano, eu me
escondi debaixo da cama. E chorava. Escondi-me das moscas, escondi-me do mundo.
Não suportava mais o zum zum zum do mundo. Eu era mosca, as pessoas eram
moscas, o mundo era mosca. Todos corriam, enfim, em busca de suas porcarias. O
mundo é uma bosta, é um grande esgoto e nós, todos nós, inclusive, com
veemência, eu sou mosca. A passos calmos, andei um pouco até a cozinha, o ato
já havia se consumado. Elas emporcalharam tudo, deixaram apenas seus restos,
indiferentes. E de mim? O que restou? Eu. Só eu havia sobrevivido aquele
holocausto de varejeiras. Só eu soube como e quando me esconder. A fúria do
mundo era complexa demais para a simplicidade do meu desespero. Mas eu era
mosca, eu ainda sou mosca. Elas vieram até mim por afinidade e não por terem
farejado à distância algum sinal de sujeira. Mas eu percebi que até então eu
não sabia que era mosca, e nem fazia noção. Porque se eu soubesse que eu era
mosca antes do ataque das moscas, eu teria me matado, não teria agüentado o
peso dessa verdade. E também ninguém, ninguém pode saber que é mosca antes de
ser atacado por um bando de moscas. Porque a máquina do mundo é complexa demais
para a simplicidade de uma mosca.
Assinar:
Postagens (Atom)