quinta-feira, 1 de novembro de 2012

O vazio de ser


Mão há como negar. Alguma coisa tem mudado e não posso mais ignorar. O que procuro força-me a escalar uma série de andaimes interiores, e você sabe quão incômodo é ter andaimes interiores? É o mínimo que desejo. Minha voz e pensamentos revelam-se de forma estridente, não posso mais suportar essa angústia.
Passo por uma via e me deparo com o absurdo do mundo. Olho em direção ao cemitério da cidade e vejo uma coleção de pequenos castelos de concreto, o pó do mundo ali reside tranquilamente em meio aos desastres cotidianos que se vão seguindo dia após dia. Quem saberá de onde vem esse desejo intenso de pular de uma ponte, de pular para dentro de si. É o infinito, não cabe. O desejo é o infinito, eu sinto. Até o medo da morte se evapora, e torna-se uma longínqua idéia de pavor. Não tenho medo de morrer. Nesses dias não tive se quer pena de mim mesmo, quis me atirar dentro do forno com o gás ligado, deitei a cabeça sobre a estreita grelha e permaneci por alguns segundos. O cheiro do gás foi renovador. Até certo ponto, asfixiou todos os pensamentos mórbidos que me ocupavam espaços desnecessários na mente, mas que logo deram espaço a outros mais aterradores ainda, houve uma mutação.
O cheiro do mundo.  Enquanto não me livrar desse último desconforto, continuarão a lançar-me chorume na cara. Os dias se escorrem lentamente aguardando com que eu tome a decisão. Tomar essa decisão é suportar a humilhação a qual todos, um dia, iremos passar. Subo as escadas que dão sentido a minha casa, e subo pensando que estou em direção ao inferno. Subo numa cadeira onde, do alto teto, há uma corda adequada ao formato do meu pescoço, pronta para o pulo final. O pulo é esse. O pulo para o infinito. Pular da cadeira, talvez, seria a síntese desse desejo do infinito que me percorre. Entro no quarto e vejo estatuetas de pensamentos passados. Percorro, cuidadosamente, cada idéia não manifestada, cada frase engolida, cada palavra mastigada, cada pensamento aprisionado. Muita coisa se passa perante essa aldeia de pensamentos petrificados. Erguem-se estátuas de antigos líderes e ídolos, admirados em algum momento da vida. Imponentes, destemidos, seus olhos sem retina, suas mãos sem unhas, seus pés atracados ao chão, imobilizados pelo tempo, lanço em direção a estes um martelo, e quebro-lhes cada canto, cada membro. A destruição.
Tenho angustiado a velha criança. Mas, penso, a velha criança está desaparecida, como as milhares que se perdem de seus pais todos os dias. A minha velha criança se perdeu em meio ao tumulto do mundo. Está decepcionada, ou decapitada em algum canto, em algum país distante, servindo de alimento para alguém. Minha ansiedade é o começo do meu fim. E o meu fim é o começo do meu começo, é aqui que começo a viver, a partir do meu fim. Vivo momentos intensos, e sei que estou no fim. Toda a vida se passou e eu não passei, permaneci sempre enclausurado dentro do meu quarto, observando a auto-estrada, o velho martírio de ser alguém preenchido por uma monotonia de pensamentos vazios. No passado, o bairro em que moro foi um centro de prostituição. Quem sabe o terreno onde se encontra minha casa já não deu espaço para uma grande casa de cortesãs? As putas já gozaram por aqui. A libertinagem já foi palavra de ordem por essas bandas. Agora restam, resignadas, as velhas mortas na beira da calçada, com seus assuntos cotidianos e tediosos. Todos aqui julgam viver com intensidade, mas poucos sabem o que é percorrer seus próprios alpendres.
Encontro algo para revelar essa angustia. A certeza que estou enlouquecendo ou ficando cada vez mais lúcido. A lucidez é um preço que se paga quando enlouquecemos. Os loucos são lúcidos que se abstêm de não reproduzir o reproduzível. A lucidez é amarga e nem todos poderiam suportar seu peso, só os loucos são capazes de viver sob o domínio de idéias contraditórias. Meu passado está em meus bolsos, e me pesa como pedras. Aproveito o peso, aproveito as marteladas em direção ao chão, em direção ao pulo, e perco absolutamente o medo de mergulhar nas asas lamacentas desse rio.

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