sexta-feira, 4 de março de 2011

Placebo

Quando o corpo e, principalmente, a cabeça já não trafegam muito bem pelas vias da vida, se faz necessário a presença de um profissional que esteja apto a colocá-los nos eixos novamente.

A título de exemplo, esta nota traz alguns detalhes e experiências vividos por mim. E seu inquieto objetivo é demonstrar o quanto estamos vulneráveis e subjugados por reagentes químicos.

Ontem, ou melhor, sempre, acompanho uma tia ao psicanalista. Tia Eugênia sofre, literalmente, de TOC, aquela doença que envolve um misto de sentimentos e desejos absurdos, por vezes esquisitos e miseráveis.

Dr. Eustáquio, o terapeuta, é um indivíduo especialmente “ritualístico”; antes, eu até pensava ser ele um descendente de ciganos com todos aqueles adereços e símbolos secretos, desencadeando em todo o meu corpo um ritmo, quase que, subliminar. Significativamente, é simpático; atingiu o topo de toda a serenidade, a idade da qual dizem ser a idade do homem, a cinquentena; é calmo, mas isso não diz, necessariamente, que seja bom. No entanto, está sempre pronto a ajudar quando for preciso. Segundo as lendas que transcorrem pela cidade, seus colegas de ofício, terrivelmente, lhe invejam. Incapazes (ao contrário dele) de realizarem exíguos milagres, pois não contam com uma áurea tão habilidosa e tamanho intelecto.

Agora, me recordo de quando acompanhei a minha tia em sua primeira consulta, e lembro-me o quanto o doutor ficara surpreso com toda a exímia descrição de início de tratamento. Sutilmente, com um tom de indiferença, respondera o clínico, após todo o monólogo travado pela paciente: “pois bem, não farei milagres nem coisas parecidas, apenas lhe ensinarei a conviver com o seu problema; o amará tanto, assim como Borges se orgulhou de sua cegueira e Camões de seu braço perdido”.

O consultório é característico a uma câmara de ar fria, muito agradável e, como não poderia deixar de ser, cheira a substâncias indecifráveis ao faro humano, não sei muito bem o que essas secretárias guardam nos armários ou expelem no ar. Bem firme e imponente na parede está posto como uma simbologia milenar de culto, excessivamente, anômalo, uma figura ilustre e sensitiva aos pensamentos subterrâneos alheios, o pai de toda a desmistificação do inconsciente, Sigmund Freud. A secretária, nada atípica, nos recebe sempre como uma secretária propriamente dita; e como a danada alcançou tanta beleza? Fico apaziguado só em olhá-la (poucas conseguem atingir tanta formosura). E nessa irrisória ilusão, tia Eugenia se transforma em uma arqueada e convalescente missionária ao adentrar o recinto, devota de todos os ensinamentos, profecias e filosofias do clínico.

Realmente, no cúmulo do desespero humano pela busca de uma solução que possa vir como uma chuva torrencial e erradicar toda a seca mortífera da alma, crê-se muito no vaticínio médico, no discurso que, imbuído na parede, mais precisamente aquele filete de papel que confere ao indivíduo o aval de desbravador das incertezas e incoerências humanas. E é, via de regra, uma verdade inalterável. Para ratificar essa proposição, numa outra ocasião, tia Eugenia dizia ao médico que não estava a cumprir rigidamente com os horários da imersão dos comprimidos que lhe são dedicados. Rapidamente, Dr. Eustáquio lhe passou um belo e intransigente sermão: pois não haveria desculpa que rolasse por sobre a face da terra que lhe fizesse acreditar que a paciente deixou de tomar os devidos remédios. E disse mais, disse que remédio é um sacrifício do homem, deve ser administrado com a maior precaução possível, porém “sem fé nada da pé”.

Eu nem acredito muito nessas conjeturas, mas quem sou eu? Nem diploma tenho. E (voltando a fatídica repreensão) para completar o momento do grande parênteses empregado pelo médico, empertigada pelo caduceu, completou o clínico: “remédio é igual a água benta, se não tomar com fé de nada adianta”. Longa certeza, no tempo em que muito se diz sobre “efeito placebo” essa moda está, realmente, em voga. E parece que tia Eugenia levou isso ao pé da letra. Nunca mais deixou de lado um comprimido se quer, se converteu a uma lunática drogada, e, em todas as noites, após o convicto diálogo com os anjos, ingere todos os comprimidos, um por um, cada qual em sua sincronia deglutiva. Bem? Se lhe faz bem não sei, mas a única certeza que tenho é que todo este escravagismo pelos remédios só lhe traz longos e plácidos momentos de quietude, e é até um grande sacrifício olhar para tia Eugenia em seu momento de desterro químico. Ultimamente, tia Eugenia se encontra bem mansa; sem alterações de humor e sem taras por táxis amarelos. Já passei um bom bocado com todo esse desregramento psicológico. No fim, acabo por enxergar a verdadeira "raison d'être" de minha tia, e não são tratamentos, remédios e psicanalistas aproveitadores, mas sim um par de chinelos, uma tampa pra sua panela, uma unha pra cortar ou desencravar, enfim, um marido. Só isso poderá salvar tia Eugenia dessa desesperadora síndrome. Mas a minha tia nunca desiste, nunca se aquieta, vive com grande furor a rabiscar os anúncios novelescos dos jornais. É uma grande piada essa procura por um companheiro. Ela, simplesmente, se sente como que se ainda tivesse na flor de toda e qualquer juventude, escolhe a dedo cada pretendente, mas, no final, tudo acaba por ser uma grande e tenebrosa ilusão.

Já sem ânimo, tia Eugenia acaba por desistir de toda esta tresloucada busca. Mas, posso estar estonteantemente enganado com as minhas deduções, pois graças ao bom menino Jesus, tudo acaba bem, apresar de toda frustração amorosa. E o efeito substancial que lhe provoca os medicamentos, lhe traz conforto, alivia e, a cada enclausurar do sol e o embotar da noite, ela põe por sobre a mesinha de cabeceira o seu copo d’água e sua caixinha inseparável de remédios; e, pobrezinha, vive por acreditar que todas as combinações químicas das quais compõem aquelas drágeas são, realmente, hóstias sagradas depositadas em sua boca pelos querubins da “prophýlaxis”.

2 comentários:

  1. não vou dizer que é um texto fácil de ser lido. o vocabulário é mais sofisticado, há tons distintos em toda a narração, sutilmente, colocados, acredito. mas, obviamente, é um texto riquíssimo, com conotações maravilhosas, definições extremamente bem colocadas. a começar pelo título que me sugere mil interpretações sobre quem realmente é o placebo do texto.
    parabéns, thiagão!

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  2. Meu amigo,que maravilha!
    Estou aqui sentindo raiva de mim mesma por não ter lido esse teu texto antes.
    É culto, tradicional e clássico.
    O vocabulário rebuscado dá mais seriedade ao texto.
    É tudo muito bem empregado.
    Só tenho que lhe desejar parabéns, querido!
    Continue assim.
    Beijos.

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