sábado, 12 de março de 2011

Nós que aqui estamos por vós esperamos

Foi bem programada a visita, não sabíamos para onde nos levariam. Era estranho, o lugar parecia meio bucólico e distante do centro e do calor da cidade. Na entrada já latejava no semblante do lugar uma imensa placa de metal, que por sinal estava a ser corroída pela feroz sede da ferrugem. O nome era LEAN. Pensei ser homenagem a algum morador ilustre da região ou algo parecido, mas era uma sigla: o que nos faz uma sigla? Por vezes deixa-nos numa estranha sensação de que o mundo necessita a todo instante de compactar-se. E foi o que houve. Aquele mundo, frio e compenetrado, a solidão que se instalava em meio aqueles móveis, a miseresa de afeto e atenção das quais aquele Lar, ardentemente, clamava.



A sigla significava: Lar Evangélico do Ancião. Longe de pretensões religiosas, me sentia convicto de que naquele lar o que menos se respirava era paz (interior). Havia um tremor dentro dos mais andejos corações que ali se faziam presente; corações esses que já amaram, odiaram, detestaram ou, até mesmo, mataram (quem sabe). Era uma avalanche de desejos que se reprimiam e se encontravam comprimidos naqueles quartos fechados e sufocantes.



Logo na entrada, houve alguns colegas que se excluíram da visita. Já notava-se que o odor forte de urina, que escapava das frestas das janelas e portas, queimava-lhes o estomago. Confesso, pois não quero mentir, nem mesmo para mim, que o cheiro também me incomodava um pouco, mas não foi empecilho para adentrar.



Entrei, firme e vacilante nem sabendo ao menos o que estava a minha espera. Quando dei por mim, já estava percorrendo os mais diversos quartos que adornavam o lugar. O quartos, na maior parte das vezes, assombraram-me. Um pouco escuro e alcoolizante , o cheiro da urina ali se fazia mais intenso, e castigava-me o nariz de forma a por dentro de meu fosso nasal brasas de fogo. Não quero com isso (toda esta minha descrição e apavoramento) denunciar maus tratos, muito pelo contrário, o serviço, por parte do asilo, estava sendo cumprido com a mais tranqüila sapiência. Mas, o que latejava em meu peito era o quanto a solidão se aglutinava naqueles olhares; teve um momento, em um dos dormitórios, que fixei bem o olhar contra uma velha e espaçosa senhora, ela tinha as pernas roxas e grossas, as veias pululavam feito carne viva. Quando olhei bem claramente, vi que em seus olhos corriam rios, eram verdes, me confundi; eram feitos de água? Logo, soltou um grave sorriso para mim, e eu, convenientemente, lhe retribui o esticar de lábios. Senti-me como que um homem feito, completo, por ter sorrido para uma senhora. E não parei, sentei-me na beira da cama de um senhor, magro, mulato e com o olhar enfeitado pelo medo. De início, não lhe disse nada, somente lhe observei uns instantes; logo, ele olhou pra mim e disse: “oi, meu nome é José!” Eu me senti desprevenido e não tive resposta imediata, como ousa aquele velho interromper um momento singular de admiração alheia? Como eu estava sendo tolo, nunca fui tão tolo. O corpo que, justamente, parecia a ser contemplado era o do velho, ele possuía o pleno direito de admitir todo e qualquer olhar. Sobrou-me apenas, reciprocamente, dizer meu nome: “prazer, eu sou Thiago!”.



Em outro momento, uma outra senhora, que estava no quarto dos fundos, logo que nos viu entrar, como se fossemos parasitas a lhe roubar os últimos pulsos do coração, nos olhou ressabiada, mas logo notou a presença de humildade em nós, e disse: “oi, sou Ana Maria enfermeira aposentada!” Confiou-nos a sua antiga e já inválida profissão!



Eu queria falar, ardia em minha língua um poder letal de fazer com que tangesse os dentes, mas não fui capaz. A cada passo que cumpria era uma invalidez interior, uma catástrofe espiritual. Lançava apenas relâmpagos de olhares e desejo. Os velhos, cada um em suas convulsões, hesitações, permaneciam ávidos, latia em seus olhos uma luz, uma estranha sensação de felicidade; a espera que um retorno eterno; a aguardar um gesto misterioso que sustentasse em si a promessa de tal regresso.



Deixamos o lugar. Quando saí, senti o ar tão fresco e saboroso que me lancei em seus braços de modo a abarcar em mim a mais pura e doce razão de viver. Tocava meus pulmões, purificava os brônquios; naquele instante caberia em meu peito toda a brisa que beijava a superfície dos arbustos.



Compartilhei por um instante, ainda, com a enfermeira de plantão, uma ponta de prosa. Curioso e sedento por saber das investidas dos velhinhos, lhe embriaguei de perguntas. Perguntei como era o trabalho, coisas típicas e despretensiosas. Ela apenas disse que havia noites em que o serviço era calmo e outras em que era mais agitado, mas nada que desanimasse. Senti nela uma extensa calma; era calma, sua voz saía feito uma canção de ninar de cristal. Assim, uma colega se aproximou e lhe deu um abraço, folheou-lhe as costas com os dedos e lhe sussurrou algo ao pé do ouvido que no momento não acoplei. Benevolente, agradeceu, incessantemente, a visita e os donativos. Restou em mim a promessa de uma nova visita, sem data e marcações. A própria brisa, que purificava os ares, cantava em meus ouvidos uma incompreensão, e nem mesmo compreendia as minhas certezas (se é que havia alguma).



Chegando ao ônibus, que nos conduziu até lá, fiz algo que já não fazia há tempos, e nem lembrava-me da última vez: uma prece. Mal sabia para quem estava a direcionar aquele gracejo, e nem mesmo possuía um ponto cardeal apropriado. Somente pensei: “continuem a fabricar gente como essa enfermeira”.

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