O fato se deu há pouco, talvez
uma ou duas semanas, algo me escapa a memória. Tudo pode ser revelado assim
mesmo como ocorreu na realidade, ou na realidade de uma ficção, o que seria o
mesmo.
Despedimos-nos porque de certa
forma nos sentimos eternos. Brincamos de dizer adeus, mas depois nos reencontraremos.
Na candente manhã de um domingo, lembro-me de tê-la visto pela última vez
de perfil, dentro do vagão. Como se trata de um relato literário, as ênfases
não serão poupadas.
- não é a primeira vez que entro
no vagão de um trem. Disse-me.
- você foi minha e eu a perdi, se
é que alguém pode ter alguém, e alguém pode ser perdido.
Foi então que observei em seu
contorno facial uma peculiaridade que li entre os versos da antiga caderneta de
poesia épica de minha mãe; Entre os rostos dos rostos encontram-se sempre
traços de ouro e suavidade. Seu rosto era permeado de simples e reluzentes
traços, uma pequena curva fazia-se presente nos cantos inferiores dos lábios.
Nada pode ser esquecido, só mesmo os pormenores.
Nada mais posso me lembrar do que
foi dito na estação. Só lembro que desci a plataforma para levá-la ao encontro
do primeiro conjunto de vagões a pousar frente à cancela. Repeti os passos do poeta. Existe apenas um
único homem de versos nesta cidade, e tudo o que sei aprendi com ele. Sabia que todo o inesperado me era
permitido naquela manhã, por isso Beijei-lhe a boca, comprimindo, suavemente
com os meus, a parte inferior de seus lábios. Ela afastou-se, e não mais
ensaiou uma aproximação. Compreendi. Para mim, um iconoclasta barroco
e misantropo entrando na meia idade, já não se pode exigir muito de uma
inocente despedida, aceitei sua condição, adivinhei em seus olhos uma
intensidade estranha, e passei a temê-la.
Sempre é uma palavra que não me é permitida. Lembro-me, por fim, que pronunciei meu pequeno nome em voz paternal. Suas mãos sobre as minhas, deixavam um aroma fresco e uma sensação de conforto. Subiu a breve escada do vagão, sentou-se em seu posto, e partiu.
Quando subi as escadas rumo a meu
pequeno quarto na Rua do Vigário, senti que os espelhos da clarabóia refletiam
uma imagem estranha. Adentrei na habitação, e senti novamente seu cheiro
cítrico. Ao me sentar sobre a cama, com o objetivo de deitar e descansar, pois
aquela manhã já havia me proporcionado uma série de demasiadas e repentinas
suspensões, olhei fronte ao espelho, e sua presença incrustada revelava uma
duplicação ou uma multiplicação espectral da realidade. No quarto escuro,
percebi que a areia do tempo escoava entre cristais e fazia-me lembrar de
versos que eu procurava esquecer. Senti aumentar o calor, e uma espada corroída
pela ferrugem se encarregava de me arrancar os olhos. Subiu por minhas veias
uma assustadora vertigem. Não havia espada. Como uma areia na ampulheta secular
do tempo, pela última vez, possuí seu amor.