terça-feira, 3 de abril de 2012

O Sonho Repetido

Levei eu três noites e três dias para me livrar deste sonho maldito. Não se pode sonhar o mesmo sonho por mais de duas vezes, isto é mentira. Por uma semana inteira sonhei o mesmo sonho, as mesmas repetições de rostos sem nomes, de vidas sem almas, de noites gritantes. Passava-se sempre no mesmo lugar, na mesma hora e com os mesmos personagens. Devem-se evitar, aqui, neste momento, certos detalhes do sonho, ao passo que o pobre escritor correrá o risco de enlouquecer, se não já estiver louco. Perdi noites, cravaram-me olheiras, psicoses, e não me libertei. Hoje estou livre, ao ponto de conseguir voltar e urdir este relato, que se aproximará o máximo da realidade, ou da realidade de minha memória, o que daria no mesmo.

Meus inimigos me detestam por eu ser quem sou. Mas eu não sei, certamente, quem eu sou, porque estou dentro de quem sou. Creio que só se sabe, efetivamente, quem se é, quando se está fora daquilo que se é. Logo, presumo que meus inimigos saibam, e disto evitam falar, quem sou realmente. O que vejo no espelho é apenas um deplorável castelo de pele e, mais recentemente, rugas. A prata, salpicada por meus fios de cabelos, já se mostra tão reluzente como a marca do juízo. Se não sou um amontoado de sonhos, sou um perambulo, um sonâmbulo da morte.

Quando sonhei o sonho pela primeira vez, não dei a mínima importância. Era apenas, pensei, mais uma forma da morte fazer uso de sua indizível face.

Numa capela ao largo de uma colina, desencadeava-se um velório. Até aqui, nada demais, velórios são eventos típicos dos meus sonhos. Poderia eu, caso tivesse uma veia e interesses por essas novas teorias que se vêem por aí, fundar uma empresa especializada em organizar eventos fúnebres. Acredito que minha memória daria para um ótimo catálogo de visitas.

Subindo uma pequena rampa, almofadada de folhas velhas e secas, deparei-me com um pequeno caixão, um caixão branco. Supostamente o branco representa e é portador da pureza e castidade, mas nunca se sabe, nem saberá quem realmente estava posto naquele lugar. Uma criança? Uma virgem? Não sei, e tive medo que abrissem a tampa e mostrassem o terrível corpo.

No recinto não havia mais pessoas senão um grupo de Freiras e um vigário. Não falavam, nada diziam. Quando perceberam minha presença, não souberam agir de outra forma senão com desprezo. É certo que tenho o dom de não existir em certas ocasiões, ou de não ser visto, o que, novamente, daria no mesmo. Quando pensei no que realmente significava minha presença naquele lugar e naquele evento, desencadeou-se um canto. Lá fora se ouvia gritos, apesar de dentro da capela não se ter ouvido um arranhão se quer. Do lado de fora um sujeito gritava que a morte é o fato mais nulo que pode acontecer a um homem. Dizia que se suicidaria para tratar sem ranços de sua tese. Não pensei que esse homem personificava algum de meus inimigos, por serem tão cheios de verdade e não menos numerosos.

Meu caro e simples leitor pode, neste instante, reparar que repito muitas idéias de outros relatos que escrevi. Mas, minha vida é uma condição insistente de repetições de temas e plágios. Plagiei-me por incapacidade e por falta de criatividade. É necessário, assim como é necessário esquecer.

Muito me sufocava o clima da instigante capela. Um odor de cera derretida penetrava pelo recinto de forma desesperadora. Chamuscadas de imagens fantasmagóricas, as paredes aparentavam não receber pintura há tempos. Muito abandonado estava o local, assim como o caixão e, provavelmente, o corpo. Intrigava-me, de fato, pensar se realmente havia um corpo ali, uma vez que o caixão não fora aberto em momento algum. Se posso supor que tudo não passava de um simulacro, tenho a certeza que minha mente é uma péssima máquina de repetir coisas e reproduzir a realidade. Eu não tenho certeza se as freiras permitiam minha presença, pois, em momento algum, olharam-me à face. O vigário, encurvado por sobre um velho livro a rabiscar traços inconciliáveis, murmurava alguma coisa.

E assim o sonho se repetia. Nada de além acontecia. Sempre acabava comigo ao pé de uma árvore de frutos desconhecidos. E o caixão permanecia imaculado, inviolável. Uma incógnita nesta sucessiva repetição de sonhos.

Levei mais um tempo para perceber que no caixão estava depositada toda a minha memória, dos tempos de meus antepassados do mar aos que hoje não abrem mão de tudo o que sabem. Para povoar o tempo, resolvi passar as três noites e os três dias lembrando a ordem e o número dos sonhos. A precisão é algo que não se pode conquistar sendo um simples ser humano, por isso, resolvi apenas consultar um brutal dicionário, o qual dizia: memória = nome.

Um comentário:

  1. Confesso que estou gostando do teu blog. Os teus textos me intrigam. Parabéns.

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