quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Um incidente cotidiano

Aos sonhos agradam as alucinações, ao fantástico, à forma...


Segundo o poeta norte-americano T. S. Eliot, poetas e escritores, geralmente, durante processo de criação, recebem a visita de uma musa (a inspiração). E esta musa pode vir silenciosamente, quando menos esperamos. Noite passada sonhei, ou melhor, acredito ter recebido a visita da musa. E, seguramente, por via de pequenos estilhaços, poderei, neste momento, redigir esta nota. Tentarei, subsidiado por minha turva memória e por minha deplorável condição humana, reconstituir o fato.

Sonhei que estava em meu próprio velório. Já era de se esperar que houvesse pouca gente, pois em vida, certamente, não cultivei extensa quantidade de amigos e conhecidos. Se não trai a memória, dos que se encontravam presentes, uns poucos eram parentes, dois grandes e únicos amigos que possui na vida e, de resto, não consegui identificar a fisionomia. Provavelmente era o coveiro ou outro funcionário do cemitério aguardando o findar de todo aquele ritual para organizar o necrotério e encerrar o expediente. Lembro-me ter adentrado mansamente à capela onde meu corpo estava por ser velado. Entrei sentindo como se estivesse indo ao encontro de um ser místico que iria vaticinar algo sobre meu destino. Não sei como tomei conhecimento deste fato, talvez fosse por via daquela infausta voz do locutor de notas de falecimento, com aquele carro vermelho a percorrer as ruelas da cidade a anunciar, com uma voz embargada, o falecimento de alguém que, certamente, era conhecido. Voltei-me à capela. Por vezes, vi meu corpo ser possuído por uma onda de voluptuosidade, e nesse ponto, já não sabia se sonhava ou se vivia aquilo realmente, mas senti que os detalhes do acontecimento se tornavam tão reais ao ponto de nem me dar cota se encontrava-me num velório de fato ou num sonho. Quando cheguei frente ao caixão, percebi que eu dormia, ou melhor, acho que dormia porque não sei se os mortos dormem, talvez eu estivesse mais acordado que eu mesmo. O rosto mantinha uma expressão serena e acolhedora, uns poucos vultos arroxeados adornavam-me os olhos. As flores, ajustadas por sobre o peitoral, eram um tanto mal-cheirosas, mas possuíam um tom muito vivo e audaz, pareciam festejar algum dia santo. Lembro-me ainda que, durante todo o velório, estive tomado por uma pequena aflição, estive a procura de algum fato ou conversa que confirmasse a causa de minha morte, mas parecia que os presentes não me viam, ou não notavam minha presença. Arrastei alguns passos dentro da capela, refletindo sobre o que se passou em minha vida e como cheguei àquela situação. E notei outro fato curioso, com estratégica presença em (quase) todos os velórios, as lágrimas. Quase não havia lágrimas, e me senti completo por isso. Um velório sem lágrimas. Recordo (não tenho o direito de pronunciar este verbo, apenas um único homem em toda a história teve esse direito, e tal homem está morto) ter observado muitos detalhes, mas jamais conseguirei materializar nenhum deles neste conto, por isso, por si só, o conto está falhado. Falhado porque não tenho certeza se sonhei ou se estou inventado este fato, se o vivi ou se alguém o contou, ou contará, em algum ínfimo instante de toda a eternidade.


Ao mesmo tempo, me afligia ainda mais por não saber o motivo da minha morte. Céus, disse olhando ao redor da capela – ao lado de fora - as tumbas e mausoléus abandonados com a pintura a se deteriorar, será que nem mesmo poderei saber do que morri? Não tenho esse direito? Por vez, pensei, não me vi nascer, nem sei ao certo a data em que foi expurgado e lançado a este mundo – só o sei porque o tabelião, ao assinar uma fresta de papel, alcunhou uma abstrata data qualquer, e como minha mãe sofria de certa intermitência na memória, jamais saberei ao certo minha data de nascimento - agora me pregam tamanha peça, não posso ver e nem, muito menos, saber a causa de minha morte. Mas, talvez, a última coisa que saberemos nesse mundo é o motivo de nossa morte, ou não. Talvez, aquele ainda não fosse o momento. Sabendo que não encontraria resposta, voltei ao velório, estava impaciente para ver a cova, minha breve e negra morada, até a voraz corrupção de toda minha face material. Novamente percebi as pessoas, como já disse, eram poucas, às vezes entrava um e outro, algum curioso que transitava na rua ou algum outro sem compromisso, mas, definitivamente, os presentes fixos eram poucos. Enfim, deu-se o fim, é fácil e perceptível reconhecer o clima instintivo que exala dos olhos humanos. Observei um profundo desatar de suspiros, olhares caridosos e, por fim, o coveiro lançar mão àquilo que dava tampa ao caixão. Quando fecharam o caixão, senti que algo em mim não estava em seu perfeito estado, como os intestinos, os pulmões, as vísceras, e todos os demais sistemas. Já a partir daí não consigo lembrar mais nada, justamente o momento em que eu tanto almejava presenciar, o sepultamento. Já não me recordo, nem sei se o houve. Na verdade, nem mesmo sabia se eu estava morto, ou sonhando, só o sabia porque me vi num caixão e na tradicional posição decúbito dorsal. E o sonho acabou juntamente com o fechamento do caixão.

Ao amanhecer, despertei com um pouco de enxaqueca e sem saber onde havia colocado meus óculos.

2 comentários:

  1. Venho há bom tempo visitando seu blog. E sinceramente acho que ele é o melhor dentre todos os que eu visito frequentemente. Acho que você tem um vocabulário rico e bonito, usa bem as palavras, joga com as expressões de uma forma muito peculiar. Acho ainda que você desenvolve ideias dentro de temas que dificilmente outro escritor comum (assim como eu) faria.
    Parabéns por tudo isso e por outras muitas coisas que eu não tive competência para descrever. Parabéns mesmo!

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  2. Que delícia de história e de narrativa, Thi!
    Sabe que dou bastante valor aos finais, não é?
    Seu final foi fantástico. A última frase me agradou de um modo incrível.
    Parabéns, meu amigo.
    Continue assim.
    (Desculpe a demora para ler seu conto).
    Helenina.

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