Nos últimos dias
tenho me deparado, constantemente, com fatos que versam sobre o fim do livro.
Sim, o livro, aquilo que também, em seu conjunto, é chamado de universo. É
certo que entro em pânico, meus ralos e poucos pêlos eriçam-se e não sei o que
mais pensar. E isto é só por sentir que eles desaparecerão em algumas décadas,
como mesmo afirmam certos arautos da informática.
Seguramente,
tudo não passa de um enorme equívoco e exagero, pois se fala do fim do livro,
não do mundo... Mas, por outro lado, se eles são sinônimos de universo, há que
manter guarda.
Não quero
discorrer sobre os pormenores da situação, o que dizem, em específico, seus
defensores e inquisidores. Diante de tal desespero, resigno-me e aceito o
brutal destino que os deuses me reservaram.
Nesta semana,
voltando para casa após uma triste jornada de suor e cansaço, passo em frente à
biblioteca da cidade. Lugar onde já sou fiel frequentador, desde os tempos em
que as enciclopédias eram as melhores companhias para um homem curioso. Eis que
surge-me uma saída, que, nem mesmo, ao longo de toda essa discussão pelo fim do
livro, seus panegiristas parecem ter pensado. Já que o prelúdio de um fim para
os impressos se faz presente, não medi esforços, e comecei a fomentar o desejo
de recolher e salvar todos os que eu encontrasse pela frente. Pensei, no exato momento,
de passagens que, nos pretéritos da memória, fazem-se tão presentes como as
relações entre uma causa e um efeito. Não sabia ao certo como faria, mas, o que
resta a um homem comum, senão aceitar aquilo que o acaso lhe impõe? Adentrei ao
simples recinto. O odor das prateleiras e suas leais instruções faziam-me
inteiro e, ao mesmo tempo, impotente. O apelo inaudito dos volumes gerava em
meu ouvido interior um embate entre centenas de milhares de páginas e a
brevidade da vida. Angustiado pela pródiga presença das prateleiras que se
levantavam diante de mim, esforcei-me para lembrar a ordem e o número de alguns
exemplares. Comecei, assim, a tatear o dorso de suas colunas. Considerei, então, que estava no fim dos
tempos, e que meu destino de único sacerdote da eternidade me daria o direito
de intuir sobre o fim dos que estavam a um passo de mim. É certo que deveria
tomar precauções, um cuidado excessivo com a ética alheia é imprescindível.
Chegando mais perto, fui acalorando ainda mais o desejo, procurando espaços
vazios por entre as estantes e observando passos. Sorte, claro, que a
biblioteca é estruturalmente humilde, conta apenas com duas secretárias que se
revezam em atender os pobres frequentadores. Além do mais, também não contamos
com monitoramentos de segurança, o que foi primordial. Outro cuidado peculiar é
sempre entrar com alguma sacola em mãos, evidente que se deve ter um local bem
discreto para se levar os livros, pois não há possibilidade de sair com um
exemplar sem antes passar pela agenda de registros e empréstimos. Voltei à
reflexão anterior. O fim, o incêndio mortal da memória e das faculdades
humanas. Como mesmo apregoou César, pode-se, sim, afirmar que muitas delas são
memórias de infâmias, mas o ato da Criação é uma sentença mágica, capaz de
conjugar esses males. Assim fui vencendo os anos, a areia secular do tempo, a
fatalidade de se povoar o espaço; fui entrando em posse do que já era meu. Do
mundo não se pode descer, de uma biblioteca não se pode sair. Agarrei o
primeiro volume, não soube, de momento, o título, mas senti que deveria trazê-lo,
pois também era filho da imensa legião. Aproximou-me um preciso esplendor,
assim como sente um náufrago a ardência em suas veias de se avistar um navio em
alto-mar, e com ele a possibilidade de salvação.
Dediquei longas
horas para aprender a configuração e ordenamento das prateleiras. Cada
aprendizado me concedia um ponto de luz, e assim pude fixar na mente as regras
e formas que delineavam todo o conjunto de armários do espaço. Não falarei da
fadiga que proporcionou este meu labor. Saí de forma natural, despedi-me de uma
das simpáticas secretárias, sem ao menos desconfiar que ali, naquele instante,
havia ocorrido um desvio de propriedade para o começo do bem da história
humana.
Ao sair,
senti-me perdido por haver perdido um espaço no tempo. Na rua em frente,
abriu-se um labirinto, segui pensando estar a caminho de casa. Enternecido,
pensei que poderia formar todas as coisas que foram em coisas que serão, pois as
causas não me bastam para entender o tudo, interminavelmente. Folheei as
páginas do livro em minhas mãos, por entre as ruas, avistei as origens narradas
ali. Vi montanhas, águias, correntes de ar e água. Uma panaceia aquela mesma com
a qual se cura a felicidade dos homens, fazia-se presente em meio a invariável
paisagem urbana. Vi cães que se desfiguravam em rostos humanos, vi Deus sem a
fantástica face por detrás de um ponto de ônibus; vi Píndaro na figura de um jornaleiro
cantando a expressão máxima do tempo: a efêmera composição da carne e a perene
força da mensagem; vi o caule de um cometa que formava uma só verdade. Do
entendimento de tudo, consegui também entender a escrita do livro.
Chegando ao meu
apartamento, confundi gradualmente tudo com meu destino; formávamos um só, o
livro e eu, e um homem, afinal, é feito de suas circunstâncias. Do incansável labirinto eterno, assim pude
desfrutar com precisa pertinência do exemplar roubado. Não havia pensado até
então em roubo, e nem mesmo o considero desta forma, nem sei o porquê de tê-lo
escrito. Morra comigo o mistério que está escrito nesta missão. Quem sonhou o
universo? Quem desenhou os espelhos? Quem pensou os ardentes desígnios que poderá
ter um homem? Este homem, de certa forma,
sou eu. Que importa as formas e o sentido figurado da vida, se agora perco
parte de minha existência dedicando-me a exceder a astúcia da morte? Não
importa a fórmula que sou feito. Se sou uma formiga em meio a um castelo de
inconveniências, de uma nação que importa daquele outro lado idéias e efeitos
que se voltam contra os homens, desprezo, e sigo assim, multiplicando-me até
encher o cárcere do tempo. Dispenso qualquer aproximação com a verdade, se é
que tal aproximação seja possível, mas não ignoro que, mesmo inconscientemente,
ensaiei encontros com a terrífica verdade do tempo. Os sonhos são as linhas que
costuram o mundo, e este sonho está dentro de outro sonho. Sonha-me a
eternidade. Seguramente, o caminho que terei de percorrer para salvar os livros
é interminável e morrei antes mesmo de despertar para a escuridão de sombras e
simulacros, de pobres vozes humanas, do mundo, do universo.