sexta-feira, 9 de março de 2012

A morte para leigos

[Forma de expurgar o vazio da morte, escrevendo]

Nunca me inclinaria a escrever sobre a morte. A morte é algo que está para além do meu entendimento. Mas, como toda experiência de vida, podemos tirar algum aprendizado, mesmo que nada seja dado de absoluto. Aqui estou. Seis anos depois de sua partida. Dedico-te esta carta não por mero capricho, para dizer que: estou aqui, olha bem, sei escrever. Não. Nem sei escrever, e nem sei ao certo o que estou a escrever. Procuro escrever para tentar entender, e também porque não há nada de mais interessante para se fazer neste momento.

Bom, procuro, com estas pobres palavras, dizer o que representa a morte para minha pessoa. Esta falsa aparência que nos costuma ser a morte, nada mais é que uma ladra. Eu sei, sei, que rogar pelo aniquilamento da morte é rogar para uma vida eterna e pela imortalidade, o que, também, eu não suportaria. Pelas voltas que o mundo anda a dar, não vale a pena ser imortal. Mas, em verdade, gostaria que a morte fosse menos abusiva ou menos indecente. Como pode uma força, um raio de uma força metafísica nos roubar uma pessoa, assim, do nada? Sinceramente, esperava mais da natureza, se, como dizem, fosse tão perfeita como se apresenta, deveria nos dar uma explicação mais plausível para o fenômeno da morte. Muitos, e acredito serem menos numerosos do que tolos, tentam desvendar, mas, sem dúvidas, não conseguirão, porque a morte brinca-vos à cara!

Outro grande absurdo da morte é a mania iconoclasta do ser humano em sepultar corpos já sem sentidos próprios, e em mantê-los em pequenos castelos de tijolos e areia. Quer algo de mais horroroso que um cemitério? Não seria muito mais asséptico se todos fôssemos reduzidos à cinzas quando morrêssemos? Quanto trabalho pouparíamos a natureza. Bem, pensando, os vermes e baratas e minhocas necessitam de alimento, mas, acredito que deve haver outras formas melhores de se alimentar senão com carne humana. Acabaríamos de vez com todo esse espetáculo que é um velório e um sepultamento. É, nada mais, uma forma de prolongar todo o sofrimento de quem resta em vida. Bom para os “convidados”, porque, duvido, para os familiares do morto não há nenhuma forma de prazer! Mas esta é uma das grandes formas do ser humano se mostrar hipócrita e inútil. Não há melhor forma de ser conhecido e ter fama do que sendo um morto! Ninguém tem inveja de um morto, porque ninguém quer ser um morto. Por isso, fulano vira santo, depois que morre, fulano era tão simpático, depois que morre, fulano era uma pessoa excepcional, depois que morre. Quanta repugnância! Não conheço todos os mortos do mundo, e por isso não posso afirmar se todos foram santos, e nem, por outro lado, que também não foram.

Eu fiz o que pude para tentar esquecer sua breve presença neste mundo. Mas você foi como a varíola, tive quando criança e nunca mais consegui me livrar das pequenas chagas. As vezes, para tentar amenizar todo o buraco que se abriu na minha vida, penso que você está longe, num longo período de férias e descanso, é o que todos procuram pensar nos primeiros dias. A idéia de sempre ter-te visto com uma vassoura pelas mãos, a deslizar pelos cômodos da casa, reforça esta minha idéia de repouso. Trabalhas-te por demais em vida, merece, de certa forma, descanso.
Quanto a mim, penso que morrerei de repente, num rompante. Talvez, quando descobrirem esta nota, posso morrer, ou, até mesmo, antes de a descobrirem. E muitos dirão, nossa, viu? Foi brincar com a morte e acabou dando no que deu! Bando de inúteis! Outra grande e prodigiosa façanha da morte: provocar um rebuliço lingüístico por entre as pessoas. Principalmente se o motivo da morte não ficar claro. Aí, será um alvo facílimo para especulações. De que importa? Morreu, pronto e acabou! Ninguém precisa saber o motivo, claro, a não ser naquelas situações onde a morte se deu por via de um assassínio, mas isto pertence só às autoridades e família do dito cujo, não necessita ser foco de investigação popular. Vai, bando de abutres, cuidar de suas próprias mortes! Morrer deveria ser libertação. Mas, no que vejo, está mais para uma prisão, onde a imagem da pessoa morta, fica, ora por motivo de adulação, ora por motivos de ódio e ranços. E só para não dizer que falei pouco de mim, digo que sofri e sofro até os dias de hoje, e continuarei sofrendo pelos dias que me restarem. Muitos dizem que mal a enterrei e já estou completamente recuperado, por mais estranha que possa me parecer esta palavra, recuperação. O silencio é o ato mais incompreendido de todo o mundo. E aí está, outra grande força que a morte exerce sobre nós, o silêncio. E por isso que o luto está interligado ao silêncio. Não há palavra após a morte, não há até se aperceber que a vida continua acontecendo. Foi a única lição tirada por mim em todo este episódio. A vida do homem está traçada em linha reta, quando esta linha acaba, acaba e ponto. O que está por fora de nós, a natureza, as plantas, as estações, o universo, são um conjunto de vivências cíclicas, que se renovam e se reinventam a cada período. Por isso, nos é caro tal entendimento. Para nós, é uma vez para nunca mais!
Chega! Já estou a me repetir por demais. Eu queria escrever algo muito diferente do que escrevi, mas agora não quero voltar atrás e apagar tudo e reescrever. Por fim, ainda estou a espera que a humanidade ou, por milagre, alguém possa decifrar esta ordem que está posta dentro de todo o caos de nossas vidas, que chamamos de morte.

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