O sonho durou cerca de vinte
minutos, ou trinta, ou todo um instante de uma vida, não sei. É algo que
envolve a existência de Deus. Se,
supostamente, existe, Ele sabe quanto tempo durou meu sonho; se não, ficará essa
ulterior porção de imagens a pernoitar por todos os outros sonhos que terei.
Fato que não é passível de entendimento e veracidade.
É simples e fatigante. As coisas
existem uma única vez, mas num sonho é diferente. Deplorável é minha condição
de sonhador, que não sabe, senão outra coisa, sonhar comigo mesmo e variações
de minha própria imagem. Meus sonhos são assim, revelam-me coisas passadas e
aterradas pelo tempo. Nunca pensei nada de original na vida, sou um simples
imitador da realidade, multiplico sonhos por meio de imagens que me são dadas
pela configuração do real. Sou uma espécie de ampulheta manipulada pela noite,
assim como a sorte e o revés pelas mãos do acaso.
Ocorreu que num dia sem sol e nem
sombras, encontrei-me sentado num dos bancos da Praça de Maio. Sentia uma
sensação plena de serenidade, talvez estivesse morrendo. Observei ao meu lado a
presença de uma intrigante moça. Tudo se passava de forma natural, como se
estivéssemos no outono. O clima agradável contribuía para meu elementar medo do
impossível.
Olhei mais um pouco, e na outra
ponta vi pessoas gesticulando de formas incompreensíveis. Senti que não sabia o
que se passava, ou o que estava eu a fazer sentado na praça? Sendo que nunca,
ou quase nunca, saio de casa. Quanto à moça, lembro-me ter lançado sobre mim um
impetuoso olhar, e de forma perturbadora disse que estava a me achar muito
simpático, que meus olhos transpiravam tranqüilidade. Apesar de tudo ter
ocorrido rapidamente, penso que minhas olheiras se intensificam com o tempo,
posso crer que meus olhos servem de depósito para coisas. Tenho o infatigável
costume de transpor os olhos para as coisas, e as coisas para os olhos.
A moça, terna e simpática, soube
que naquele instante via em mim um pai, um protetor. Por eu não ter tido
filhos, notei que aquela moça era algo de mim, uma parte, uma brutal extensão
de minhas carnes.
Acusam-me de misantropia, ou
talvez de prepotência, mas é certo que não me sinto um sujeito isolado. Meus
difamadores, que não são menos estúpidos que numerosos, dizem que nunca pisei
na rua, que tenho aversão à plebe. Fato que não me impedirá de incorrer no agonizante
ditirambo dos sonhos. No instante, sentia
que não era pouco, que eu estava em consonância com toda a irmandade cósmica, senti-me
um grande irmão do universo. De todos os costumes fúnebres, de todos os
carteiros, de todos os moradores de casas com números pares, de todas as
pessoas que não sabem o que sabem e que sabem o que não sabem, de tudo o que
possa existir no mundo, como, por exemplo, o singular cérebro de uma formiga.
Senti-me, em resumo, único. Todos os demais pontos do universo transportavam-se
a mim, e depois convergiam na presença da moça.
Após um tempo, inconcebível para
minha razão, a moça me beijou no rosto. Suponho (e esta é a única palavra que
me é dada por direito neste instante) isto foi a prova que eu não estava
sonhando. Sua presença já havia durado demais para ser apenas um sonho. Despertou-me,
ao mesmo tempo, uma insaciável solidão, e lembrei-me de como eu, nas tardes de
sábado, no solitário saguão da academia, estudava latim arcaico. Sei que meio
período de sonho não se passa em vão. Entendi, também, que não podíamos nos entender,
a moça e eu, ou que nos entendíamos pelo senso do beijo, ou éramos incompreensíveis
um para o outro da mesma forma distante como se apresenta o amor, sempre tão
impassível de se compreender como os compêndios de meu avô, onde encontrávamos
assuntos tão singulares como os costumes sexuais dos povos balcânicos.
A situação, ao contrário do que eu previa, não
durou muito, pois era absurda por demais. Inútil de minha parte lutar contra
uma fantasia e discutir meu inevitável destino. Pois a máquina do universo é simples
demais para a complexidade de um sonho.
A moça, como todos, afastou-se.
Não mais a vi.
Acordei em meio a um cheiro de mofo.
Coloquei um chá no fogo, e comecei a lembrar do que havia se passado no sonho,
de como a moça se despediu sem ao menos perceber que minha vida é um gradual
desenrolar de peças trágicas. Como um lento derreter de velas, sofro, agora,
pela vontade de não sonhar. Não fui
outro depois desse sonho, como tantos outros. Meditei sobre a moça, suas
feições ciganas, sua pele mascavo. Batia-me à cabeça uma voz lenta e fraca, e
dizia-me que tudo não passava de criação da magia e ordenava-me transformar
tudo em pó. Creio que o encontro, ou nosso casual encontro, foi inevitável. Ela
me sonhou e eu a sonhei. Sonhamo-nos mutuamente, como assim é, e como assim
somos. E, ao fim de tanto conjecturar, recebi um telefonema, de uma voz sem
nome, dizendo que eu havia perdido minhas chaves no saguão da academia.